tag:blogger.com,1999:blog-52362484185489948222024-02-06T19:50:58.108-08:00Rua do RezendeContos de Miguel do Rosário (do blog Óleo do Diabo)Unknownnoreply@blogger.comBlogger48125tag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-74757281815506702432010-11-26T01:22:00.000-08:002010-11-26T01:32:08.136-08:00<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjbrbaEMt5VIH2bam-jU3ol2hrZn3HqmNS4uIo1zACcQ0jfsFq9pwZkxQpQjPd_gBCa3J15QCYbWA4yIlpiAry74OYQCfrFZYslJe2MVCuyeFQ_5W_yiqQ7D4aF3wP4YMNgv2qrdO965ybZ/s1600/CAPA_REZENDE.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjbrbaEMt5VIH2bam-jU3ol2hrZn3HqmNS4uIo1zACcQ0jfsFq9pwZkxQpQjPd_gBCa3J15QCYbWA4yIlpiAry74OYQCfrFZYslJe2MVCuyeFQ_5W_yiqQ7D4aF3wP4YMNgv2qrdO965ybZ/s640/CAPA_REZENDE.jpg" width="478" /></a></div><br />
Prezados leitores, este é um livro em aberto. Continuo corrigindo cada conto. Depois de tantos anos de blogosfera, tornei-me viciado nessa plataforma, que me dá liberdade de aprimorar constantemente o trabalho literário.<br />
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Obrigado pela preferência e boas leituras.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-59084044128040466922010-11-26T00:59:00.000-08:002010-11-26T00:59:09.676-08:00Asa DeltaSentindo o cano frio da pistola pressionar-lhe a nuca, Danuza olha a cidade lá embaixo e lembra como tudo era antes, há quarenta anos. Ainda não havia o Aterro, andava-se de bonde por toda parte e a revista Grande Hotel era esperada ansiosamente por ela e suas irmãs. Como deixamos a cidade apodrecer dessa maneira?, pensa Danuza, enquanto tenta adivinhar o motivo pelo qual o bandido não atirava.<br />
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A família havia se recusado a pagar o sequestro. Será que me preferem morta? Viu uma asa delta cruzar o céu . Que fim lamentável, héin, dona Danuza, diz para si mesma e seus olhos se enchem de lágrimas. É que se recordara de seu grande amor, Paulinho, que morrera aos vinte e oito anos, atropelado por um bonde. Isso foi há muito tempo. Ela tinha sessenta agora, apesar de suas amigas jurarem que não aparentava ter mais de quarenta e cinco. Mantinha a forma caminhando diariamente no Aterro e fazendo hidroginástica. Paulinho cursava Direito mas sua paixão era a música. Enfiava-se nas rodas de samba de toda a parte da cidade. Ela o acompanhou diversas vezes nessas rodas, e foi aí que aprendeu a dar valor à cultura popular. Seus pais foram pessoas conservadoras, sobretudo o pai, seu Alberto, um juiz aposentado que não apreciava nada que fosse produzido pelo povo. Por causa disso, inclusive, é que ele não gostara de Paulinho desde a primeira vez em que ele foi à casa da namorada. Paulinho confessara que considerava a obra de Cartola, Noel Rosa e Pixinguinha mais relevante, para o homem brasileiro, do que Mozart, Beethoven, ou o jazz americano.<br />
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Seu Alberto não se importou com a referência ao jazz, do qual também não gostava, mas achou impertinente a comparação com a música clássica. Não era razão para brigar, e talvez, no fundo, a antipatia de seu Alberto tenha se originado em outros fatores, como a pele quase escura de Paulinho e sua tendência a rir de assuntos sérios, como a expansão comunista no país. Além de ser flamenguista: seu Alberto era vascaíno doente e achava que todo rubro-negro era mau-caráter.<br />
O bandido continuava pressionando o cano da arma na cabeça de Danuza, silencioso. Com o rabo do olho, Danuza reparou que ele segurava o celular com a mão esquerda, como se esperasse ansiosamente uma ligação da família da vítima. As poucas nuvens estavam excepcionalmente brancas e assemelhavam-se a roupas estendidas num varal invisível. Vindo por trás do morro, passando sobre eles, um bando de andorinhas voou na direção do grande vão entre as montanhas da Tijuca e a baía de Guanabara.<br />
<br />
Após o golpe de 64, Paulinho começou a se envolver com política e a se afastar de Danuza. O amor dela, ironicamente, eclodiu com violência justamente nesse período. Uma de suas amigas disse que ela estava era com amor-próprio ferido, pois Paulinho sempre se mostrara extremamente apaixonado e ela nunca dera mostras convincentes de lhe corresponder. Agora, que ele tinha outros interesses, ela sentia-se diminuída. <br />
<br />
Danuza admitiu a si própria que a amiga tinha um pouco de razão, mas só em parte. O fato é que, assim como Paulinho havia amadurecido rapidamente durante a primeira metade dos anos 60, atingindo um agudo grau de consciência política, ela também crescera; e aprendera a amar Paulo por tudo que ele era e por tudo que havia ensinado a ela.<br />
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O atropelamento que o matou aconteceu durante uma perseguição policial. Paulinho se tornara membro de uma organização revolucionária que pregava a resistência armada ao regime militar. Nas raras vezes em que se encontraram, bem que ela tentara dissuadi-lo a abandonar a política e levar uma vida normal. Não será pelas armas que vocês vão mudar o Brasil, dizia ela; em outros países, em outras épocas, pode ter dado certo, mas aqui não.<br />
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O celular do bandido tocou. Danuza escutou-o falar com alguém de sua família. Não sentia mais o cano frio da arma em sua nunca. <br />
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Aí, madame, seu filho falou que conseguiu o dinheiro. Vamo descer o morro. Foi por pouco, héin, dona? Eu só não atirei porque me distraí olhando aquela asa delta. Sou fascinado por isso. Desde moleque, ficava viajando, do alto do morro, nas asa deltas que passavam. Me imaginava numa delas, voando por aí, livre como um pássaro. Por isso não atirei. Não queria estragar o sonho vendo o sangue de sua cabeça espirrar em mim.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-26875314248603503652010-11-26T00:57:00.000-08:002010-11-26T00:57:55.817-08:00O Apokálypsis segundo Raphael WidãoEsta crônica, escrita por Antonius Vanquise III, foi publicada na Coluna Bagatongas do site Andrômedas do Passado, no ano 5.201 DC.<br />
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Às vezes, ao acordar, imagino ouvir o canto de pássaros de verdade. Esqueço que estamos no ano de 5.201 e não existem mais pássaros na Terra. Até o terceiro milênio, algumas Províncias mantinham áreas florestais altamente protegidas, onde viviam diversas espécies de animais selvagens, pássaros incluídos. Com o tempo, porém, verificou-se que essas florestas estavam se tornando verdadeiros criadouros de vírus e foram proibidas. As espécies animais foram catalogadas, congeladas e hoje apenas alguns exemplares mais interessantes são mantidos vivos nos laboratórios secretos do Ministério Mundial de Pesquisa e Ciência.<br />
Mas a literatura e o cinema não nos deixam esquecer de nosso passado idílico, quando homens conviviam com plantas e animais sem medo de pragas ou doenças. Eu mesmo sou um aficcionado pela arte antiga, sobretudo do início do segundo milênio. É fascinante observar como o ser humano da época, mesmo com o escasso tempo livre que o trabalho e os afazeres domésticos lhe permitia, ainda sim conseguia produzir boa literatura.<br />
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O que me intriga mais é constatar que, mesmo com tão poucos recursos tecnológicos - a internet estava em seus primórdios - eles eram tão parecidos com os homens de hoje, tão sentimentais, cínicos, irônicos, desastrados e ambiciosos. A diferença fundamental entre o homem do passado e o de hoje está muito mais no tipo de organização social e política. A humanidade era dividida em países, com governos e culturas diferentes ou mesmo divergentes entre si. Essas divergências frequentemente se convertiam em hostilidade e guerra. <br />
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Aliás, foi justamente uma guerra que provocou a primeira grande catástrofe humana do segundo milênio. Uma das potências militares de então, os Estados Unidos, atacou o Irã, importante produtor de petróleo, principal combustível da época, deflagrando um conflito de proporções crescentes que aniquilou dois terços da população global e mergulhou o mundo em séculos de trevas culturais e políticas.<br />
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Prezados leitores, vocês sabem que, pouco antes desta catástrofe ocorrer, a maior parte da humanidade vivia em paz e harmonia, apesar da grande pobreza que afligia milhões. Num país chamado Brasil, onde hoje fica a Província Global Paralelo Sul 25, havia um grupo de escritores que participava de uma revista que marcou época, exercendo significativa influência sobre os rumos da literatura mundial. Há mesmo quem afirme que o peso cultural da Bagatongas (título da revista) foi determinante nas votações internacionais que escolheram o português como língua oficial da humanidade.<br />
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Bagatongas era um site e uma publicação impressa, editados por Raphael Widão, jovem carioca (ou seja, nascido na cidade do Rio de Janeiro) que conseguiu superar a miséria, a fome e uma terrível doença para tornar-se um dos mais poderosos intelectos do segundo milênio.<br />
Aliás, vale algumas palavras sobre este curioso personagem. Além de criador da Bagatongas, Widão foi autor de vários livros de enorme reconhecimento de crítica e público, entre eles o Cagalhão, sua primeira obra. Em sua auto-biografia, escrita aos noventa e cinco anos, Widão revelou que o principal motivo para a criação da revista Bagatongas foi uma visão aterradora do apocalipse. Mikail do Corsário, que escreveu um biografia romanceada de Widão, confirma esta informação. O testemunho de Corsário, mesmo que romanceado, é importante porque escritores mentem muito, especialmente em suas biografias.<br />
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Corsário conta que Widão tinha uma rara doença em que pés e mãos não parávam de crescer. Ao fim de sua longa vida, Widão possuía um pé cujo comprimento era quase o mesmo que sua altura, e mãos do tamanho de um carro de passeio. Mas ele nunca deixou que esse problema o impedisse de fazer qualquer coisa, inclusive sair para beber com seus companheiros da revista. <br />
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A visão apocalíptica de Widão nunca foi levada à sério por seus amigos. Em seu romance, Corsário fala sobre o dom profético do criador da Bagatongas.<br />
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"Nós não acreditávamos nessa história de apocalipse que o Widão nos contava, pois ele era um grande sacana e, além do mais, quem iria acreditar numa porra dessa? Segundo ele, haveria uma guerra terrível que mergulharia o mundo nas trevas por séculos. Por isso, dizia ele, é necessário registrarmos a nossa história, nossa cultura, através da literatura, para que, no futuro distante, talvez daqui a milhares de anos, quando a civilização humana for reconstruída, ela, a humanidade, possa ter uma documentação abundante de nossa vida atual. Fazer arte é lutar contra a extinção do homen no universo, completava Widão, para delírio nosso, que considerávamos esse papo uma grandiosa e genial piada surrealista. Como ele era profético e como éramos ingênuos! Nunca imaginaríamos que o homem pudesse cavar, para si, um buraco tão profundo e fétido, e se enterrar ali voluntariamente, como um louco ou um idiota."<br />
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Bem, chego ao final desta crônica dizendo o que vocês, provavelmente, já desconfiavam. O nome da minha coluna semanal é uma homenagem a esta revista dos tempos antigos. A Bagatongas do passado tem sido uma das minhas maiores fontes de inspiração. Os arquivos do site ainda estão no ar, no endereço Bagatongas.net. Acessem e leiam as colunas de Raphael Widão, Luciano Inácio Lula da Silva, Marciano Calypso, Camilla Chopes, Tatiana Palloci, Augusto César Correia, e de todos os outros participantes desta revista que não só mudou o passado - como todos os clássicos, continua mudando o presente e o futuro.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-15676731585732658442010-11-26T00:55:00.001-08:002010-11-26T00:55:49.487-08:00ÍndiosOlhando a chuva pela janela, Adriana pensava em como seria bom continuar na cama, lendo o jornal, tomando café, espreguiçando-se a manhã inteira. Mas era dia de semana e tinha que trabalhar. Exorcisou a preguiça e levantou-se num pulo. Helena tomava o café na cozinha, sentada à mesa, concentrada num livro.<br />
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- Bom dia, Helena. Já lendo essa hora?<br />
- Bom dia. Esse livro é muuuito bom! Tô no finalzinho. Quero terminar antes de ir pro trabalho.<br />
- Ok. Esse café tá novo?<br />
- Acabei de fazer.<br />
<br />
Adriana serviu-se uma xícara de café e foi pra sala. Ligou a televisão para assistir, como de hábito, ao jornal da manhã. O âncora informava que diversas tribos indígenas haviam decidido realizar um grande encontro no Rio. O encontro fora planejado em sigilo e algumas autoridades estavam apreensivas em relação ao tipo de manifestação que os índios estariam dispostos a fazer. Nas cidades próximas às tribos, era comum os índios invadirem repartições, prendendo os funcionários, com o objetivo de pressionar o poder público para que atendesse suas reivindicações. Essa estratégia, porém, não estava mais dando certo, até porque o governo havia transferido os funcionários mais graduados da Funai para capitais distantes das áreas indígenas. Ao mesmo tempo, contava o âncora, exibindo depois um trecho de entrevista com um cacique, crescia a revolta entre os índios, porque, segundo alegavam, suas terras vinham sendo invadidas por madeireiras, mineradoras e plantações de soja. <br />
<br />
A campainha tocou. A essa hora, pensou Adriana, só podia ser o porteiro trazendo uma correspondência urgente. Não era. Pelo olho mágico, reconheceu o vizinho, Seu Afonsinho, com cara de preocupado.<br />
<br />
- Bom dia, seu Alfonsinho. Aconteceu alguma coisa?<br />
- Você não ouviu nada estranho ontem à noite?<br />
- Não, por quê?<br />
- Ontem de madrugada, escutei um grito horrível vindo do 701. Sei que era do 701 porque reconheci a voz do moço que mora lá. Resolvi esperar até de manhã para checar o que havia acontecido. Não queria incomodar por bobagem. Ele podia ter batido o martelo no dedo, alguma coisa assim, não é? Mas hoje de manhã toquei lá e ninguém atendeu. <br />
- Humm, quem mora lá é aquele rapaz alto, de cabelo comprido, né?<br />
- É sim, tenho certeza que o grito veio de lá.<br />
- Será que não foi um pesadelo? Digo, um pesadelo dele, que o fez acordar gritando?<br />
- Talvez, mas é estranho que ninguém atenda a campainha. O porteiro da noite disse que ele não saiu do prédio. O turno desse porteiro começa às três horas da madrugada e vai até as nove horas da manhã. Ele teria visto se o rapaz tivesse saído do edifício.<br />
- Será que o porteiro não tirou um cochilo...<br />
- Ele jura que não, mas de qualquer forma, eu pedi pra checar nos vídeos do elevador e da entrada. Ele acaba de me interfonar dizendo que, de fato, o rapaz não saiu à noite. <br />
- Que é que aconteceu? – Helena tinha escutado a conversa e estava de pé na sala, uma xícara de café numa das mãos e o livro na outra.<br />
- Seu Alfonsinho acha que aconteceu alguma coisa no 701 – respondeu Adriana.<br />
- Já tocou lá?<br />
- Ninguém atende – disse Seu Alfonsinho, acrescentando com um jeito sombrio: – vou chamar a polícia.<br />
<br />
Algumas horas depois, sentada à mesa de seu escritório no centro, Adriana pensava no episódio da manhã sem grande apreensão. Seu Alfonsinho, síndico do pequeno edifício de quatro andares na rua Monte Alegre, tinha fama de paranóico. Que significava um grito? O rapaz podia muito bem estar transando com a namorada (ou namorado) e ter gritado na hora do orgasmo, pensou Adriana com volúpia, imaginando a si própria na cama com o jovem vizinho. Podia simplesmente ser um grito sem nenhum sentido, absurdo. E daí? Não se pode mais gritar em paz hoje em dia? Uma das coisas que mais a impressionara no documentário sobre os índios Xingu, reprisado pela Manchete há algumas semanas, foi que o índio podia dar um berro no meio da aldeia, a qualquer hora do dia ou da noite, sem que ninguém fosse lhe perguntar porque tinha feito isso. Se isso não é liberdade, o que é então? Empanturrar-se de hamburguers num drive-in? Ficou tão distraída pensando nisso que demorou uns segundos para escutar o telefone tocando. Era Seu Alfonsinho. <br />
<br />
- Alô, dona Adriana. Desculpe te incomodar aí no seu trabalho. Tô ligando pra contar o que aconteceu. Uma tragédia, minha filha. Achei melhor você saber logo pra não se assustar quando voltar pra casa. A polícia interditou quase todo o andar. Você vai ter que pegar o elevador dos fundos e entrar em casa pela porta da cozinha.<br />
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- Que houve seu Alfonsinho? Fala logo pelo amor de Deus!<br />
- A polícia veio e arrombou a porta do 701. Você não pode imaginar.<br />
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Marcaram encontro às oito horas num restaurante em Santa Teresa. Adriana ligou para o celular de Helena e contou sobre o crime. Decidiram jantar fora e, se possível, dormir na casa de uma amiga ou mesmo num hotel. Não queriam nenhuma proximidade com aquela atrocidade. De acordo com o relato de Seu Alfonsinho, o corpo do vizinho estava terrivelmente mutilado. Os peritos concluíram que a vítima fora barbaramente torturada antes de morrer. Estava muito bem amordaçado, com uma bola de borracha dentro da boca. Em algum momento, porém, deve ter conseguido se livrar da mordaça e gritado. O assassino o matou em seguida, de acordo com a teoria da polícia.<br />
Naturalmente, não foi um dos jantares mais agradáveis. A sombra do crime pairava como um fantasma em torno delas. Adriana não tinha contado à amiga todos os detalhes do crime, fornecidos pelo minucioso relato que lhe fizera Seu Alfonsinho ao telefone. Evitaram tocar no assunto durante a refeição. Na verdade, procuraram esquecê-lo completamente. Terminado o jantar, Adriana pediu caipirinha e ligou para vários amigos e amigas, chamando-os para o bar. Em algumas horas, as duas estavam bêbadas e felizes e inocentes. Quatro ou cinco amigos atenderam o chamado. Adriana contou, superficialmente, o que havia acontecido no edifício e pediu que não voltassem a tocar no assunto. Um deles ofereceu o apartamento para que elas passassem a noite.<br />
Esse amigo chamava-se Heráclito e escrevia reportagens para uma revista de turismo. Levou-as para sua casa em seu carro, Adriana no carona e Helena atrás, segurando uma garrafa de vinho e remexendo-se ao som do toca-disco. Chegaram à casa de Heráclito às duas e meia da manhã. Ele morava num edifício enorme, na Gávea, com os três primeiros andares ocupados por um grande estacionamento privativo. O carro entrou pela portaria, subiu um andar, subiu outro e chegou ao terceiro pavimento. A escuridão no estacionamento abalou o humor das duas amigas. <br />
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- Esse lugar é assustador! – disse Helena, com voz arrastada. Sentia-se tonta e tudo que queria agora era esticar-se num sofá, beber muita água e comer alguma coisa doce. <br />
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Entraram no elevador, chegaram ao décimo quinto andar. No corredor, um grito pavoroso fez com que elas gritassem também de susto. Heráclito também assustou-se. Tratou de abrir a porta do apartamento, trancá-la bem trancada e foi interfonar ao zelador, para contar o que tinha acontecido. O interfone não funcionou.<br />
<br />
- O que está acontecendo? – Helena perguntou, aérea, enquanto estudava o bar da casa, à procura de uma bebida bem forte que a fizesse desmaiar de vez e esquecer o mundo.<br />
- Não sei, o interfone está estragado. Que grito estranho! Acho que vou chamar a polícia.<br />
O telefone estava mudo.<br />
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Heráclito olhou confuso para as duas amigas. Não sabia o que fazer, nem o que dizer. Foi ao bar, onde Helena já estava instalada bebericando um uísque sem gelo, e se serviu do mesmo. Adriana observou os dois bebendo como se ficar bêbado fosse a solução mais inteligente. Disse:<br />
- Vocês não podem ficar aí bebendo. A gente tem que fazer alguma coisa.<br />
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Os dois nem se dignaram a olhar pra ela. Continuaram a fazer o que estavam fazendo. <br />
<br />
Alguém bate à porta. <br />
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- Vocês ouviram isso? – pergunta Adriana. Os dois continuam em silêncio. Ela vai até a porta e abre a janelinha para ver quem era. Quando vê o que há lá fora dá um grito de horror, fecha a janelinha e corre até onde estão os dois amigos, agora já não tão absortos. Heráclito tem as sombrancelhas franzidas, como se refletisse profundamente. <br />
<br />
- Quem está lá fora? - pergunta ele.<br />
- Vá lá ver. É horrível. Inacreditável.<br />
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Mais batidas. Heráclito dá um gole mais forte e vai até lá. No caminho, lembra-se de seu celular e dá um tapa na testa, como quem se auto-acusa de estupidez. Resolve dar uma olhada rápida pela janelinha da porta antes de chamar a polícia. <br />
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Lá fora, dois índios muito altos e musculosos, com pintura de guerra em todo o corpo, enormes facas penduradas na cintura, seguram, cada um, uma cabeça ensanguentada. <br />
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Pelo celular, Heráclito liga apressadamente para 190 e fala com a atendente.<br />
- Pelo amor de Deus, mande uma patrulha aqui. Tem dois índios no prédio matando as pessoas.<br />
- Meu senhor, sinto lhe informar, mas o senhor terá que aguardar. Estamos recebendo o mesmo tipo de chamada por toda a cidade. Acho que está havendo um grande ataque dos índios ao Rio de Janeiro. Ou então é um grande trote.<br />
- Não é trote, estou vendo os índios pela janelinha da porta. <br />
- Acredito no senhor. Estou registrando sua reclamação. Estaremos enviando uma patrulha assim que for possivel.<br />
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Um dos índios (Heráclito via tudo pela janelinha) pega uma machadinha numa sacola pendurada às suas costas e começa a destruir a porta.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-34151651062989194002010-11-26T00:54:00.000-08:002010-11-26T00:54:01.644-08:00O corredorSempre gostei de correr, mas sabe como é, trabalho, cerveja, sono pesado, preguiça, essas coisas todas acabaram por conspirar para que eu interrompesse por longos anos minhas amadas corridas matinais. O tempo foi passando, casei-me, tive que trabalhar ainda mais, acordar mais cedo, o stress aumentou, e as cervejadas, apesar de mais espaçadas, por falta de tempo, ou mesmo por causa disso, ficaram mais extensas, causando, no dia seguinte, ressacas terríveis, que não estimulavam em nada meus exercícios.<br />
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Bem, o negócio é que nunca mais corri, e o resultado foi desastroso: engordei vinte quilos, arrumei uma série de problemas de saúde e, por fim, sem que isso seja uma conexão lógica, mas que há uma relação eu sei que há, meu casamento desandou.<br />
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Já divorciado, vim morar no Bairro de Fátima, onde os aluguéis são os mais baratos da cidade - não é mole dar um terço da renda para a ex-mulher. Numa noite de cervejada, no bar do Mineiro, fui convidado para uma festa ali mesmo em Santa Teresa. Paguei a conta, levantei-me e fui. Chegando lá, tranquilizei-me ao ver que havia gente da minha idade (tenho quarenta e dois) e me dirigi ao bar.<br />
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Ela devia ter uns vinte e cinco anos, e era linda. Conhecia-me de nome, disse que admirava meu trabalho à frente do instituto e, papo vem, papo vai, fomos dançar. <br />
Foi então que me dei conta do tamanho monstruoso da minha barriga. Conforme eu dançava, ela balançava indecorosamente, além de quase me fazer perder o equilíbrio por duas vezes. Não pude continuar. Deixei a linda moça dançando sozinha e voltei ao bar, disposto a encher a cara para afogar minha gordurosa tristeza.<br />
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Decidi voltar a correr.<br />
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Não no dia seguinte, porque acordei com ressaca, mas no dia posterior. Pulei da cama às seis horas da manhã, tomei um suco de laranja e, devidamente trajado para a ocasião (tênis, calça de moletom, camiseta branca), saí de casa.<br />
A primeira parte do percurso fiz caminhando. Desci a Riachuelo, que estava cheia de gente indo pro trabalho, atravessei os Arcos da Lapa, segui pela rua da Glória, depois rua do Catete, entrei numa transversal ao lado do Museu da República, atravessei as pistas da Praia do Flamengo e subi a passarela que passa sobre as avenidas do Aterro. Cheguei ao Parque do Flamengo e aumentei a marcha. Comecei com um cooper suave e logo estava verdadeiramente correndo. Tomei o sentido do Obelisco, à minha direita, onde fica o restaurante Porcão.<br />
Muitas outras pessoas corriam ou andavam. Engraçado ver aqueles senhores barrigudos caminhando: era quase óbvio que vinham por ordem médica. Podia imaginar o médico dizendo a eles: "O senhor precisa fazer regime, evitar gorduras, e caminhar diariamente no mínimo dois quilômetros".<br />
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Como há tempos não corria, fiquei exausto em menos de meia hora. Mas resisti e ainda corri mais um pouco, até que me joguei, sem forças, num gramado ao lado da pista. <br />
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Assim terminou o meu primeiro dia de corrida.<br />
Os músculos doíam-me tanto no dia seguinte que fui obrigado a esperar uma semana para voltar a correr. Na segunda-feira seguinte, num belo dia de primavera, portanto, lá estava eu novamente no Parque do Flamengo, correndo. Mesmo sem ter testado a balança, algo me fazia crer que já tinha perdido alguns quilos.<br />
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Para me estimular pensava na mulher que conhecera na festa. Depois que perdesse esta indecente barriga, gostaria de reencontrá-la. Ela dissera-me que também gostava de frequentar o Mineiro, e isso me deu esperanças de que poderia topar com ela lá em qualquer noite dessas.<br />
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Desta vez, passei pela primeira passarela do Aterro, a que dá no Museu de Arte Moderna e na Marina da Glória. Decidi fazer um caminho diferente e tomei o sentido do aeroporto Santos Dumont. A barriga sacudia pra cima e pra baixo, mas eu não ligava. Um colega do trabalho perguntou-me se eu não achava mais prático fazer uma cirurgia de redução do estômago. Eu expliquei a ele que a questão não era só a perda de peso. Eu precisava resgatar o hábito de fazer exercícios. E nada melhor que correr, que eu gostava tanto. Correndo, meus pensamentos voavam, livres.<br />
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Chegara no aeroporto, entrara pelo promontório artificial que se estende uns cinquenta metros dentro da baía – o qual foi quase destruído por uma ressaca alguns anos atrás - ao fim do qual contemplei uma bela paisagem: a Igreja da Nossa Senhora da Glória, ao fundo, no alto do monte; a praia do Flamengo; o Redentor; e o Pão de Açúcar à minha esquerda. Parei um instante para absorver aquela beleza e agradecer mais uma vez a Deus pela cidade maravilhosa em que nasci.<br />
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Estava nesse ponto quando vi, lá no início do promontório (aliás não sei nem se o nome certo é esse mesmo, promontório, mas por enquanto fica assim), um sujeito com trajes bem parecidos com o meu, da mesma cor. Ele também estava parado, como que a me olhar. <br />
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De repente, ele deu meia volta e dispara na direção do aeroporto. <br />
Tratava-se de um episódio sem importância e eu não lhe dei importância. Comprei uma água mineral, descansei um pouco, e peguei o caminho de volta, andando.<br />
<br />
No dia seguinte, lá estou eu a correr novamente. Desta vez, ia levemente preocupado com o indivíduo da véspera. Volta e meia olhava pra trás, buscando vê-lo. Certa hora, tomei um susto horrível ao avistar, na pista da praia (eu corria na pista de dentro), um sujeito que me pareceu ser ele. Mas foi alarme falso. <br />
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Não corri por muito tempo. Estava bem cansado. Voltei caminhando. Quando cheguei a uns cinquenta metros do meu prédio, parei assustado. O tal indivíduo estava diante da portaria do meu edifício, olhando-me. <br />
<br />
Aproximei-me cauteloso. Ele ainda vestia as mesas roupas que eu. Só falta essa, pensei, um maluco que me persegue e me imita. O estranho era que ele também era bastante parecido comigo. Estava agora junto dele, mas ele não me olhava, fingia estar esperando alguém, sei lá. Estava em pé, parado como um espantalho. Decidi dar um fim naquela palhaçada. Dirigi-me a ele:<br />
<br />
- Com licença, senhor. O senhor também corre no Aterro?<br />
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Ele me olhou de alto a baixo; um olhar cruel, cheio de desprezo, que me feriu os brios, e não abriu a boca. Abalado e meio fora de mim, insisti na pergunta:<br />
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- Eu tenho certeza que vi o senhor no Aterro e depois no Museu de Arte Moderna, ontem. Não foi?<br />
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O zelador, acompanhado de um morador, saíram de onde estavam, na mesa da portaria e me abordaram. Tinham uma expressão preocupada.<br />
<br />
- Seu Adolfo, o senhor está bem?<br />
<br />
Olhei pra eles, ainda irritado com a indiferença de meu interlocutor. Como um sujeito pode nos seguir por dias seguidos, vestindo as mesmas roupas, e depois não se dignar a responder a uma simples e inocente pergunta? Falei com ele ainda outra vez.<br />
<br />
- O senhor está ouvindo? É surdo?<br />
<br />
O porteiro e o morador se entreolharam. Escutei alguém, lá de dentro do prédio, falar algo como “Ih, ele surtou!”. Era uma moça que também observava a cena do hall do elevador.<br />
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Perdi o controle e gritei:<br />
<br />
- O SENHOR QUER FAZER O FAVOR DE ME RESPONDER! EU O VI ME SEGUINDO NA SEMANA PASSADA E ONTEM. E DEPOIS O VI NO MUSEU DE ARTE MODERNA. QUEM É VOCÊ? QUE QUER DE MIM?<br />
<br />
Finalmente, o indivíduo se virou lentamente, abriu a boca, voltou a fechá-la, depois abriu de novo e disse, sílaba por sílaba:<br />
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- Eu não sou ninguém. Eu não existo, seu otário. Você enlouqueceu.<br />
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Foi assim que perdi minha lucidez. Hoje estou internado numa instituição psiquiátrica em Jacarepaguá, tentando me livrar do maldito sujeito que fica me seguindo e usando as mesmas roupas que eu.<br />
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De vez em quando, esqueço que ele não existe, e ponho-me a xingá-lo descontroladamente, ao que ele me responde apenas com um frio olhar de desprezo.<br />
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Graças a Deus, a clínica tem um enorme jardim, onde eu posso correr diariamente. Já perdi os vinte quilos adicionais que tanto me incomodavam e, assim que me livrar definitivamente daquele FILHO-DA-PUTA IMITÃO, quero encontrar de novo a mulher linda com quem eu dancei naquela festa.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-40854440732113007532010-11-26T00:53:00.000-08:002010-11-26T00:53:01.698-08:00Biografia barataEstão dizendo que a teoria do Big Bang escrita por aquele cientista inglês é falsa. Quer dizer, essa história de que o universo teve um nascimento, através de uma explosão de um corpo hiper-concentrado, cujos detritos espalharam-se pelo espaço, formando as galáxias, contém lacunas demais para fazer algum sentido. De qualquer forma, mesmo que fosse verdadeira, e aí? O mistério continua: antes da explosão, havia o quê?<br />
<br />
Eu fico pensando isso diante de meu pai, silencioso em seu caixão de madeira barata, rodeado de amigos e parentes; vou pensando em todos os grandes enigmas da humanidade, ainda tão misteriosos quanto há dez mil anos. Meu pai era ateu. Mas renunciara ao comunismo, desde que a Tchecoslováquia foi brutalmente agredida pela Rússia nos anos 60. Quando a face perversa do stalinismo russo tornou-se amplamente conhecida, ele converteu-se num dócil e tolerante social-democrata. <br />
<br />
Na época de FHC, costumávamos discutir apaixonadamente sobre política, embora com um respeito mútuo tão profundo que nunca houve qualquer vestígio de rancor ou ressentimento entre nós. Ele defendia ardorosamente o governo FHC, o que eu não podia compreender. Hoje eu penso que ele estava cansado de odiar e reclamar. Talvez sentisse a proximidade da morte e queria viver os últimos anos de sua vida com alguma esperança no país e no mundo.<br />
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Meu pai não era um homem moderno. Foi duro ensinar a ele todos os macetes de computador que ele precisava saber para poder trabalhar como jornalista. Certa vez, tive um ataque de riso que durou meses ao descobrir a extensão de sua ignorância. Até hoje acho essa história inacreditável. Estávamos no sítio de Friburgo. Ele preparava um churrasco, como de costume e, distraidamente, soltou a bomba. Na verdade, eu o induzi a tal afirmação, fazendo algumas perguntas estratégicas. Enfim, ele pensava que vírus de computador era um vírus de verdade, um ser orgânico, uma ameaça biológica, ou fungo, que estragava as máquinas. Aliás, pensando bem, talvez no futuro esse tipo de coisa possa até existir.<br />
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Essa história, porém, não é sobre meu pai. Ele faz parte da minha história, naturalmente, mas o personagem principal sou eu mesmo. Sei que muitos de vocês estão enjoados de romances na primeira pessoa. Eu mesmo já li diversas críticas sobre a obsessão dos novos escritores para com seu próprio umbigo. Já tentei escrever de outras formas e não deu certo. Talvez, mentindo um pouco, aqui e ali, consiga me libertar da minha própria história, que não tem nada de emocionante.<br />
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Minto. Como pude escrever tamanha bobagem? Como pode não ser emocionante uma história com um assassinato e um filho acusado de matar o próprio pai? O processo ainda corre na Justiça e aguardo o final da investigação em liberdade.<br />
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Essa suspeita, divulgada em todos os jornais, acabou com minha vida social. Ninguém me convida mais a festas, meus amigos não querem mais nenhum contato comigo. Raquel, minha namorada, pediu "um tempo". <br />
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Antes de mais nada, quero assegurar a vocês que tudo não passa de uma grande armadilha arquitetada por alguns parentes inescrupulosos que pretendem usurpar a herança do meu pai, e assumir a direção do jornal do qual ele era o sócio-majoritário.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-30929961832673781242010-11-26T00:51:00.001-08:002010-11-26T00:51:59.797-08:00Blog HallucinationsFácil seria colher aquela flor e comê-la, ou pior, esmagá-la entre os dedos e espalhar os detritos sobre o asfalto quente. Tanta gordura hidrogenada acaba por esclerosar as metrópoles. As avenidas são como artérias sujas, carros e glóbulos trafegam lentos pelos canais estreitos. Vendedores e artistas invadem a pista para vender refrigerante ou implorar um trocado aos motoristas.<br />
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Tenho trinta anos e um terno semi-novo, que eu mesmo passei hoje de manhã e com o qual pretendo iniciar minha nova carreira de evangelista louco, algo parecido com o Zaratustra após descer a montanha. Meu palanque será esse blog. Talvez eu possa ensinar algo de útil às pessoas. Por exemplo, sobre a solidão. <br />
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Muita gente sofre de solidão. Quem mora em cidade grande, sofre a solidão da metrópole, que tem algumas características específicas: uma hostilidade geral que nos machuca diariamente, nos enfraquece e nos transforma em covardes: frágeis plantinhas tremulando sob uma tempestade de buzinas, xingamentos, assaltos e frustrações afetivas.<br />
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Nas pequenas cidades, porém, a solidão é mais pungente, pois o solitário não tem programas culturais & boêmios que o distraiam de seu mal. E os vizinhos, espreitando sua vida, se tornam um enorme olho maldito, um lago negro de águas geladas no qual mergulhamos por distração ou ingenuidade. E ali nos afogamos por conta própria, preferindo o silêncio negro e opressivo das águas à histeria assassina das línguas envenenadas.<br />
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Vencer a solidão só é possível quando se aprende a conviver com ela. É o velho ditado: não pode com ele, junte-se a ele. Aprender a ser sozinho é a melhor saída.<br />
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Outro método muito bom é transformá-la, a solidão, em liberdade. Basta ver as coisas pelo seu lado positivo. Pense nas companhias indesejáveis que poderiam estar a seu lado e sinta o quão livre você é por estar sozinho. Imagine uma pessoa chata, insuportável, mesquinha, egoísta, e que você, por alguma misteriosa razão do destino, poderia ser obrigada a estar com ela várias horas por dia. Feche os olhos e fique pensando nisso durante o máximo de tempo que puder. Quando você abrir e verificar que está sozinho, sentirá imenso alívio. <br />
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É por aí que a gente vai aprendendo a ser feliz, ou então nos desesperamos de vez.<br />
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Eu, por exemplo, já fui muito solitário. Depois que meus pais morreram, vendi tudo que herdei (ou seja, o apartamento na Glória, com tudo dentro) e fui morar na Lapa, num kitnet no décimo primeiro andar. Não tinha amigos, namorada, colegas de trabalho, nada. Após o pagamento dos impostos, fiquei com a bolada de cerca de cem mil reais e depositei tudo no banco. O gerente me explicou que o dinheiro, se aplicado num fundo conservador, renderia uns quinhentos a setecentos reais por mês. Num fundo arriscado, poderia gerar até dois mil reais mensais.<br />
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Como meu aluguel era de trezentos reais e eu não estava a fim de trabalhar, optei pela segunda alternativa. Dei sorte, pelo menos nos primeiros meses. Lembro-me que, logo no primeiro mês, saquei três mil e duzentos reais. Nunca tivera tanto dinheiro. Estava decidido a gastar tudo em um mês.<br />
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Foi quando senti cair sobre mim, como um vaso lançado do trigésimo andar, o peso da solidão.<br />
Se eu fosse um cara bonito, as coisas seriam mais fáceis. O negócio é que, na época, eu era muito feio. Pra começar, era morbidamente gordo. Um psicólogo explicou-me que eu sofrera um trauma pela morte violenta de meus pais. A perda súbita de quem eu mais amava, explicou o homem de olhos frios e boca fina, havia deflagrado uma produção descontrolada de hormônios ligados à ansiedade, produzindo em mim uma fome crônica, insaciável. Era verdade: eu comia o tempo inteiro.<br />
Quando me vi na rua com todo aquela grana, sem ter com quem sair, ninguém pra conversar, nada pra fazer, a primeira coisa que pensei foi em comer. Mas, num impulso conservador, optei pela alternativa mais barata: enfiei-me na pastelaria chinesa mais próxima e devorei quatro pastéis e dois caldos de cana.<br />
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Também pensava em sexo obsessivamente. Lamentavelmente, meu aspecto deplorável dificultava-me o acesso a mulheres "normais", quer dizer, que não fossem prostitutas ou tipos medonhos. Antes de engordar tão brutalmente, tinha uma namorada bem bonitinha. Após o acidente que vitimou meus pais, ganhei vinte e cinco quilos em dez meses. Separei-me de Antônia e fui morar sozinho. Quando o problema da herança foi resolvido e saquei minha primeira renda, no verão de 2004, estava sem fazer sexo há mais de um ano.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-74818945089291771912010-11-26T00:50:00.000-08:002010-11-26T00:50:14.612-08:00As anãs de peito caídoSe existia uma coisa que Maria Lúcia odiava, sobretudo nesses momentos em que aguardava uma vaga no cabeleireiro, era esse tipo de mulher: baixinha, histérica, e metida a gostosa. Só metida, que fique bem claro, porque todas eram barangas. Barrigudas, peito caído, rosto deformado.<br />
Em geral, nem dava trela, ficava na sua, folheando as revistas – o que para ela constituía um entretenimento sumamente agradável. Aliás, hipócrita é quem diz que não é uma delícia matar o tempo olhando fotos e lendo fofocas sobre as celebridades do Brasil e do mundo.<br />
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Naquela tarde calorenta (graças a Deus o salão do Jorge tinha ar-condicionado), porém, não conseguiu ficar quieta. A baixinha, que estava ali para fazer um alisamento japonês (outra coisa ridícula, pensava, além de prejudicial ao cabelo, oh mulher burra), não parava de falar besteira. E ela ali, quieta, fingindo se concentrar na entrevista com a Daniela Cicarelli. <br />
Na entrevista, Daniela dizia que foi obrigada a impedir a presença de jornalistas brasileiros no seu casamento com Ronaldinho, realizado em Paris, porque vendeu os direitos de imagem a um grupo espanhol. Não revelou por quanto, mas supõe-se que foram milhões... de euros.<br />
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E a anã não parava de falar...<br />
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- Você viu a Luma de Oliveira no carnaval? Continua linda, não? Ah, eu ADORO a Luma! E a Xuxa? MA-RA-VI-LHO-SA!<br />
<br />
Que vulgaridade! Luma? Aquela... (bem, é melhor não dizer aqui o que ela pensou, para não ferir a suscetibilidade da modelo, porventura leitura dessa coluna). Xuxa? Essa baixinha aí pensa que tem que idade? Oito anos? <br />
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A tampinha continuava. Sua voz estridente dominava o pequeno salão na rua do Riachuelo.<br />
<br />
- O que eu não entendo é a Globo dar esse cartaz todo à Ana Paula Arósio. Sempre papel principal em minissérie... Por quê não dão para a Leandra Leal, ou para a Dora Falabela?<br />
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Aí era demais. Ouvir porcaria sobre Luma ou Xuxa, até aguentava. Mas falar mal da Ana Paula Arósio, sua “ídola”, a grande atriz, a mulher maravilhosa, linda... não, isso não! Maria Lúcia largou a revista e ergueu a cabeça, em atitude de guerra. Só não interviu naquele exato momento simplesmente porque a baixinha não deu chance - falava sem pausas, encaixando as frases umas nas outras mesmo sem conexão lógica. Agora estava falando de política, com jeito de sábia (ah ah, que cena). Valha-me Deus! O que essa... essa coisa... vai falar de política? <br />
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- Acho muito certo a Rosinha ter mexido seus pauzinhos e mudado o sistema de ensino no estado. Acabaram com essa coisa de ensinar pros menino que o homem veio do macaco. Heuéin? Agora ensinam a verdade da Bíblia. O homem, assim como a mulher, veio de Adão e Eva! Eu tenho três filhos, num sabe? E num quero que os menino aprenda coisa do diabo na escola não.<br />
<br />
Essa última intervenção tirou toda a iniciativa de Maria Lúcia. Sua raiva também desanuviou. Pegou a revista e voltou a folhear. Tratava-se de uma pobre coitada, uma paraíba semi-analfabeta (nada contra os nordestinos, mas é que a verdade é que era uma baixinha de cabeça chata – certamente uma imigrante). Três filhos, e não devia ter nem vinte e cinco anos... De fato, um caso triste. <br />
<br />
Espiou novamente a anã para fazer um último juízo. Pelo espelho, comprovou mais uma de suas teorias. Peito caído. Toda anã paraíba tem peito caído, pensou, como que escrevendo uma máxima filosófica num livro interior.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-73447598677280835592010-11-26T00:48:00.000-08:002011-07-29T19:48:19.048-07:00Crônica de uma tarde bêbadaTenho feito caminhadas pelos arredores da Cruz Vermelha, esmiuçando antigos casarios, sobrados coloniais, a rica e decadente arquitetura do centro da cidade. Há uma energia misteriosa nas ruas cujo significado procuro decifrar. Saio de casa à tarde, por volta das três ou quatro horas. O céu muito azul. Subo a Riachuelo, passando pelo Hospital Espanhol, a Academia Brasileira de Filosofia, entro pela Marques de Pombal, viro na Irineu Marinho, paro num bar e peço uma cerveja.<br />
<br />
A sede do jornal O Globo fica na esquina. Enquanto bebo cerveja, procuro identificar algum jornalista. Não vejo nenhum, apenas algumas moças com pinta de estagiária andando apressadas.<br />
<br />
Finalmente aparece um cara com pinta de jornalista. Alto, branco, olhos azuis, óculos de aros vermelhos, a roupa limpa e bem passada, cores claras e alegres. Tem um porte altivo, orgulhoso, deve escrever sobre política. Um desses jornalistas que, apesar de assinarem as matérias, a gente nunca sabe o nome, nem lhes conhece o rosto, porque só os colunistas é que ficam famosos.<br />
<br />
Ao passar por mim, ele me olha fixamente, de forma um pouco exagerada. Minutos depois ele retorna, entra no bar. Compra cigarros, me observa de perto. Sustento o olhar. Ele sorri, pede um uísque, não tem, pede um conhaque, bebe, me encarando sorrindo. Eu sorrio, iniciamos uma conversa amena. Ele é jornalista, de fato, de política, na mosca!<br />
<br />
Na casa dele, cheiramos umas carreiras, ele pergunta se estou com fome, não estou, ele abre o bar e pega uma garrafa de uísque. Eu vou até o som, escolho um cd, ligo, fico dançando, excitada e feliz no centro da sala.<br />
<br />
Enquanto danço, excitada, no centro da sala, olho-me no espelho e vejo um homem. Eu sou agora o jornalista de óculos de aros vermelhos, eu sou alto, branco, de olhos azuis e a mulher, que era eu, está sentada no sofá, beijando outra garota. Vou até o bar, completo meu copo, pego o gelo e lembro do que fiz durante o dia. Conversei, ao telefone, com um senador, que me transmitiu informações explosivas sobre a crise política.<br />
<br />
As duas prosseguem a perfomance. Uma é garota de programa. A outra, ex-eu, é meio estranha, mas bonita. Encontrei-a num bar perto do jornal. Disse-me que estava escrevendo uma crônica sobre a Cruz Vermelha e precisava de histórias.<br />
<br />
Elas páram de se beijar. Uma delas está sem camisa, tem seios grandes, com mamilos enormes, inchados, respira forte, quer sexo. Chamo-a de peituda, ela ri, tem dentes um pouco cavalados, mas o rosto é harmonioso, olhos castanhos claros, nariz fino e lábios suavemente carnudos. Ela acaricia os próprios seios e roça uma perna na outra.<br />
<br />
A outra é a escritora, magra, seios pequenos, olheiras profundas muito sensuais, chamo-a de Sherazade. Ela tem um sorriso giocôndico, está cheirando muito pó, digo para tomar cuidado, esse é puro.<br />
<br />
No espelho vejo que continuo sendo o jornalista alto, mas estou um pouco mais gordo, e não tenho mais os olhos azuis. A peituda desapareceu. Há somente eu e a escritora na sala, nós dois dançando, eu beijo seu pescoço, ela estremece. Ela me diz que estuda jornalismo, que está desiludida com a profissão, uns vendidos. Não estico o assunto enjoado, já sei o que ela vai falar, sempre a mesma coisa. Beijo sua boca, ela me morde os lábios.<br />
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"Puta que pariu! Você me machucou!"<br />
<br />
Ela tem um olhar estranho, me dá calafrios. Me afasto um pouco, olho bem dentro de seus olhos, vejo um brilho de loucura, que merda, não tenho sorte com mulher, quando é bonita é louca, quando é legal é um tribufu. Ela pega a estátua de mármore sobre a mesa e parte pra cima de mim, insana!<br />
<br />
No espelho, levo um susto, sou eu quem segura a estátua de mármore, estou no meio de um impulso, acerto a cabeça do jornalista, ouço o som dos ossos partindo. O sangue espirra na minha roupa. Ele cai, desacordado, morto?<br />
<br />
Revisto à casa à procura de jóias, dinheiro, carteira, agenda. Encontro a agenda, dou sorte, ele anota as senhas do cartão. Limpo as impressões digitais, apago a luz, saio do prédio chique em Ipanema, tomando cuidado para não ser vista por ninguém. São três e cinquenta da madrugada.<br />
Entro no carro dele, estacionado na rua, disparo pelas avenidas, acelero enlouquecidamente no aterro.<br />
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Acordo no dia seguinte, vou ao banco, saco o máximo de dinheiro, compro os jornais, paro num bar perto da Cruz Vermelha para beber uma cerveja. Dali a meia hora, vou ao banheiro fazer xixi, o espelhinho me devolve a imagem de um homem com aproximadamente trinta anos, muito bêbado, tentando organizar os pensamentos: bem, com sete reais dá para beber exatamente três itaipavas e uma cachaça com limão.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-76047842755330995572010-11-26T00:44:00.000-08:002010-11-26T00:45:30.657-08:00As lésbicas da rua 13Parece imitação de rua de Nova Iorque, mas o vereador Turíbio Santos, que foi o autor do projeto de lei que mudou o nome da rua Coronel Sebastião Neves para rua 13, explicou que era uma homenagem aos treze soldados brasileiros que morreram na batalha de Santa Cruz.<br />
<br />
Mas o que importa nesta história não é o nome da rua, e sim que eu fui morar lá, no prédio número 81, mais ou menos na época em que o presidente dos Estados Unidos tinha renunciado em meio a um terrível escândalo de corrupção. Cito este acontecimento, porque foi através de uma conversa relativa a este assunto que eu conheci as duas moças que moravam no apartamento vizinho. Elas eram dolorosamente bonitas. Uma era branca, loura e lânguida. A outra era uma morena escultural, com trancinhas africanas, olhos rápidos. Eu sempre via a loura lendo jornais na cafeteria Guanabara, que ficava na esquina, onde eu também gostava de ir para tomar um café expresso. Ela gostava de ler a Folha. No dia em que os jornais publicavam os artigos referentes ao escândalo da Casa Branca, eu, vendo que ela punha de lado seu jornal, perguntei se não podia emprestá-lo a mim. E pus o meu jornal à sua disposição. Ela gostou da parceria e alguns minutos depois estávamos tomando conhaque e discutindo política internacional. O nome dela era Sônia e a outra moça chamava-se Andréia. Não teve pudor de admitir abertamente: "somos casadas". A sua coragem era tão pura, que me tornei imediatamente um admirador. Neste dia, ela usava jeans azul e uma blusa quase transparente. Tinha seios grandes e redondos, com mamilos pontudos. <br />
<br />
Daí em diante, eu batia ponto diariamente no café Guanabara. Acordava às oito horas, botava uma roupa bacana e ia para lá. O que eu queria? Eu sabia que elas eram lésbicas, mesmo assim todo o meu ser estava concentrado na tarefa de ir para a cama com as duas, e fazer uma orgia com as duas, e ter o privilégio de olhar as duas transando na minha frente. O plano foi se formando da maneira mais espontânea e talvez por isso mais poderosa possível. Primeiramente, fiz amizade com a loura, Sônia, que era funcionária de uma organização não-governamental inglesa com filiais em toda a América Latina. Passamos diversas manhãs juntos na cafeteria, tomando conhaque e discutindo política. Aí ela me convidou para jantar em sua casa. Tomei um banho e me apresentei com uma roupa estrategicamente escolhida para a ocasião. Uma camisa com a estampa do Bob Marley, Jim Morrison, Chê, Marighella, uma montagem muita louca, que eu comprei num camelô-hippie que fazia ponto na Lapa, antes do prefeito proibir o comércio informal no bairro. <br />
<br />
Andréia atendeu a porta, vestindo um shortinho tão apertado que me fez ter uma espécie de bloqueio mental e não consegui pronunciar nenhum "Boa Noite" ou "Tudo Bem". Mas ainda tinha os gestos, então balancei positivamente a cabeça para indicar que estava muito bem obrigado e ela me indicou um sofá, no qual me lancei com sofreguidão. Quando ela se virou e foi em direção ao bar, encher para mim um copo de uísque, verifiquei perplexo que ela possuía um pequeno rabo de diabo com aquela ponta de seta e tudo saindo por um buraco do short. Meu sangue gelou e quase gritei quando ela se virou e perguntou se eu queria gelo. Disse que sim e esperei que ela trouxesse o copo para pedir uma explicação. Foi quando ouvi as risadas de Sônia. E logo depois as risadas de Andréia. Tinham me pregado uma peça. Andréia destacou o rabo do short e o arremessou em cima de mim. Comecei a rir, um pouco constrangido, mas, depois de um gole decisivo que secou o copo, relaxei e pus-me a rir desbragadamente. <br />
<br />
Foi uma noite memorável. Não fizemos a orgia, mas bebemos e conversamos e rimos e nos tornamos grandes amigos. Andréia contou-nos suas aventuras como guia turística. Tinha histórias de fazer um sujeito engasgar-se até a morte de tanto rir. Sônia explicou os objetivos de sua ong e o papel dela na instituição. Do meu lado, expliquei o que eu fazia na época: eu era uma espécie de ghost writer, quer dizer, escrevia monografias, trabalhos de faculdade, discursos para políticos. Era uma profissão totalmente mercenária, mas que me permitia pagar o aluguel, a alimentação, o cinema e as bebidas. Que mais eu queria da vida?<br />
<br />
A única coisa que me incomodava era a impressão maluca de que havia mais alguém na casa. Às vezes, parecia escutar um ruído em um dos quartos. Uma vez, olhando um espelho que havia no corredor, pensei ter divisado um rosto que me espiava assustado. Em determinada hora da noite, já bêbado, perguntei inocentemente se havia mais alguém na casa. Sônia, que tinha um sorriso etílico preso à seu rosto, ficou séria de repente. Aí voltou a sorrir, um pouco falsamente no início, mas logo depois não havia mais nenhum traço de preocupação em seu rosto. Ela sabe mentir, pensei, entre apreensivo e excitado. <br />
<br />
Mas eu tinha visto a pedra cair e estremecer as águas geladas daquele lago. Minha intuição me dizia que havia alguma coisa de errado no ar.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-54454477160635897742010-11-26T00:42:00.000-08:002010-11-26T00:42:54.735-08:00O diário de VioletaAdmito: sou invejosa. Quando vejo minha vizinha sair com o namorado novo, um gato moreno, alto, cabelos crespos, fico verde de inveja. Também sou safada. Piranha mesmo, com o maior orgulho. Não é que consegui chamar a atenção do tal gato, na hora em que ele esperava a vizinha na portaria, e ainda o convenci a entrar no meu apê? Pois é. <br />
<br />
O pretexto era que me ajudasse a instalar o dvd. Eu estava vestindo um shortinho indecentemente apertado e uma camisa branca transparente. Tinha que segurar o riso quando flagrava o gato hipnotizado olhando meu corpinho. Fiz de tudo para deixá-lo louquinho de tesão. Inventava razões pra me debruçar de costas pra ele, empinando ao máximo o bumbum. <br />
<br />
Reparei que ele estava perdendo o fôlego. Ah, esses homens. São todos iguais. Quando ficam com tesão nem conseguem falar direito. Adoro ser mulher! E mais ainda ser piranha. Mas tenho classe. Não vou dar detalhezinhos picantes sobre o que aconteceu depois. Só conto que o torturei por várias horas, com todas aquelas poses fingidamente espontâneas. Foi delicioso. Matei vários gatinhos com um só beijinho: livrei-me da inveja, satisfiz minha ânsia por safadeza e fiz um amor gostoso. Ufa! Estava precisando. Há três meses não fazia sexo. <br />
<br />
Meu nome é lindo. Violeta. Eu e minha irmã somos sócias de uma loja de sucos em São Bernardo dos Campos. Minha maior diversão é fazer tudo aquilo que os outros chamam de errado. Sou invejosa e safada, já disse. Sou também consumista, com orgulho. Tivesse mais dinheiro, consumia mais. Adoro passear no shopping e gastar dinheiro com bolsas de griffe que depois ficam inutilizadas no armário e roupas caras que me enjoam antes de usar pela primeira vez. Mas também não sou burra. Junto dinheiro para o caso de necessidade. Necessidade de pagar um michê, por exemplo. Brincadeira! Enfim, quem sabe? Talvez um dia precise apelar para esse tipo de coisa. <br />
<br />
Tenho trinta e dois anos. Faço exercícios e dieta para manter o corpinho magro e atraente, muito bem distribuído em um metro e sessenta de altura. Há dois meses, realizei um sonho. Apliquei duzentos e vinte mililitros de silicone nos seios. Agora, quando ando nas ruas, os homens ficam loucos, magnetizados por minhas turbinas aerodinâmicas espetando a camisa. Outro dia, proporcionei prazer a um vizinho voyeur, ele devia ter uns quinze anos no máximo, que me espiava de binóculo do prédio do outro lado da rua. Tirei a roupa e fiquei me exibindo e me masturbando pra ele. Gozei alucinadamente, imaginando sua maravilhosa punheta. <br />
<br />
Outra característica minha, além da inveja, da galinhagem e do consumismo, é a paixão pela escrita. Tenho um blog na internet, que alimento todos os dias. Também gosto de colocar fotos. Eróticas, de preferência. <br />
<br />
Ah, ia me esquecendo. Não tenho preconceito contra mulher. Se for bonitinha e ordinária, pode me procurar para uma curtição. Adoro orgias. Se você está entediadacom seu namorado, me chame. Podemos fazer um programinha a três. É de graça. Vou ficando por aqui. Não se esqueçam de enviar uma mensagem pervertida. Beijinhos de língua. Tchau.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-5548493023859738342010-11-26T00:40:00.001-08:002010-11-26T00:40:46.484-08:00As putas também amamOs olhos claros de João fixam-se no espelho, os olhos claros fixam-se no reflexo, no reflexo do espelho, do espelho caralho. Não quer dar um soco no espelho? Rebentar tudo? <br />
<br />
João pega uma enorme faca, não tinha outra, para arrancar o lacre da garrafa. Está nervoso, apressado, e corta o dedo. Um pedaço de carne voa e cai sobre a mesa. Olha perplexo para a mão e vê que falta uma parte. O sangue demora alguns segundos para começar a fluir aos borbotões. Faz um curativo com fita crepe. Improvisado, mas eficiente. Abre a cachaça e pega um copo. Dor, dorzinha, dor de criança. Toma um longo trago. <br />
<br />
Escuta a marchinha de carnaval. O bloco passa lá embaixo. Tão jovem! A vida inteira pela frente! Tão formidavelmente solitário! O pau lateja suavemente, como que a mostrar sua presença. Não transa há... quanto tempo? Três meses? Fizera uma promessa: não ia mais tocar punheta. Tinha lido em algum lugar que a punheta deixa o cara resignado, paradão, sem aquela vontade imperiosa de correr atrás de uma mulher de verdade. Devorava com os olhos as moças que via na rua. Teve que fazer um esforço sobre-humano para não dar em cima da mulher do Walter, aquela piranhinha gostosa. Por que uma mulher vai na casa de um amigo de seu marido, às dez horas da noite, vestindo uma minissaia que mais parece um cinto? João olhou novamente o reflexo no espelho, tentando ver a si mesmo como um estranho. Era assim que os outros o viam? Era assim que Lúcia o via? <br />
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Toma um susto com as batidas na porta. O interfone da portaria estava quebrado, e ainda tinham a cara-de-pau de cobrar uma taxa de condomínio de cento e vinte reais! Ia entregar o apartamento, não tinha dinheiro para o aluguel. Seu pai morrera, a mãe estava doente, morando com a irmã no subúrbio. E ele também tinha sua dignidade. Não ia bater na porta de ninguém, que nem mendigo, pedindo comida. Cumprimentou Lúcia com aflição. Ela tinha peitões macios, que sentiu na hora do abraço. Ficou de pau duro. Ela percebeu e esfregou-se nele com mais força. <br />
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Que história contou aos amigos no boteco? Uma mentira? Comeu a Lúcia, no chão do kitnet, afastando jornais e livros com os pés. Não! Isso foi sonho! O espelho olha João. Ele desperta do transe. Enche outro copo de cachaça e bebe. Lúcia foi embora, magoada porque ele não a quis. Porra, era mulher de seu melhor amigo! Não dava! A imagem do rosto de Walter atormentá-lo-ia e talvez nem conseguisse uma ereção. Ah, mas ela é tão gostosa. O bloco de carnaval tocava na esquina. Veste uma camisa, toma outra dose e sai. Estava com seis meses de aluguel atrasado e o proprietário ameaçou aparecer com a polícia a qualquer momento. Olha o punho fechado, trêmulo, e olha a si próprio, no espelho, olha a si próprio dar um soco no espelho, porra. Alguma coisa dá errado. O punho atravessa o espelho sem encontrar um fundo firme. Um caco rasga-lhe o pulso. O sangue espirra. Ah, Lúcia, por que não lhe beijei a boca? Ou será que beijou? Está bêbado? Não se recorda que ela, loucamente, tirou a camisa, mostrando os peitos, peitões enormes, siliconizados será? Não. Eram moles, caídos. Naturais. Não deu soco nenhum, isso sim foi pesadelo. Olhou os pulsos, intactos. <br />
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No elevador, encontra o único vizinho com quem costuma trocar algumas frases. Era baixo e gordinho, fantasiado de prostituta. Muito engraçado. A saia curta descobre-lhe as pernas cabeludas. Pergunta a João, sorrindo, se sabia da novidade. Que tinham prendido o assassino. O que matou o rapaz do décimo primeiro andar. Não, não sabia. Pois é, diz o vizinho, prenderam. E sabe quem era? A loura do onze. Não! Juro! A loura? Sim, a loura. Era amante dele. Parece que ele ameaçou abandoná-la, ou tinha arrumado outra e ela ficou sabendo. A polícia achou a arma do crime, um facão de cozinha, e uma testemunha disse que viu, pelo olho mágico, quando ela arrastou o corpo para fora do apartamento, e o deixou largado no corredor, ainda vivo, sangrando como um porco. João olha os pulsos e vê sangue. Quase grita. Olha o vizinho, que conta mais detalhes do caso. Descobriram que a loura era prostituta em Copacabana, numa boate chique, e ele era cafetão de vários travestis aqui da Glória. E traficante também. Olha os pulsos de novo e não há nada.<br />
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Pergunta ao vizinho se estava indo curtir o bloco da esquina. Sim, vou dar um tempo ali, depois vou para outro bloco. Depois pra outro, até não aguentar mais e dormir num banco de praça, acordar e continuar dançando. Até acabar o dinheiro. Ou eu morrer. Ou o mundo acabar. Posso ficar com você?, perguntou João. Mas claro, disse o vizinho. Se você pagar sua cerveja, que hoje só pago pra mulher. Tudo bem, eu tenho dinheiro pra cerveja. Não tenho é pro aluguel. Estou abandonando o apartamento. Já vendi tudo, levei as roupas pra casa de um amigo e agora estou saindo pra nunca mais voltar. Na esquina, o bloco toca marchinhas de carnaval. Olha os pulsos, não sangram mais. Nunca tinham sangrado. Mas o curativo de fita crepe no dedo continua lá. Lúcia é uma gostosa. Devia ter comido.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-57976495884683079092010-11-26T00:39:00.000-08:002010-11-26T00:39:38.229-08:00CapitalismoSOBREVIVÊNCIA. Essa é a palavra mais importante para o morador da Baixada. É preciso exercitar MUITO a criatividade para simplesmente permanecer VIVO. É preciso, sobretudo, ser cauteloso, muito cauteloso, para não fazer parte dos números sombrios que dão fama à região: mais de quarenta homicídios por mês. Viver, na Baixada, é uma ARTE. <br />
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Entretanto, como toda arte, há momentos em que o artista está sem inspiração, ou simplesmente cansado, e seu pincel borra a tela em que há tempos trabalhava. E todo o trabalho vai por água abaixo. Uma bala perdida, uma confusão com a polícia, uma briga com quem não deve, ou o rapa que passa, recolhendo tudo...<br />
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Foi o caso de José Santos dos Reis, morador de Nova Iguaçu, que trabalhava de camelô no Centro do Rio. Vendia cds e dvds piratas de todos os tipos. Seu ponto ficava junto à Estação Carioca do metrõ, ao lado de um vendedor de livros usados. Passava o dia apregoando seus produtos:<br />
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- Windows XP, Page Maker, Microsoft Office, apenas quinze reais.<br />
- Matrix, Senhor dos Anéis, Cidade de Deus, dez reais cada.<br />
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Quem lhe arrumou esse trampo foi o vizinho, Chico Nerd, que montara um escritório em sua própria casa. Copiava cerca de duzentos cds por dia e os entregava para os desempregados do bairro revenderem por toda parte. Uns faziam ponto no centro comercial de Nova Iguaçu e de outras cidades da Baixada, mas Reis, que era esperto, ia vender no Rio, onde conseguia preços melhores e muito mais compradores. Demorava um pouco pra chegar, mas era compensador. O único problema era mesmo o rapa, ou a guarda municipal, que atuava com muita brutalidade, e recolhia o produto apreendido. Em ano e meio de trabalho, Reis sempre lograra escapar. Os vendedores haviam organizado uma espécie de rede de informações em tempo real, que lançava um alerta a cada vez que o rapa aparecia.<br />
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Um dia, porém, Reis foi pego desprevenido. Uma forte gripe, contraída no dia anterior, não o havia deixado dormir à noite. Estava cansado, distraído. Fechava os olhos involuntariamente, dormindo em pé.<br />
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Fechou os olhos e sonhou que estava na casa de sua mãe, também em Nova Iguaçu. A casa da mãe era mais espaçosa, com dois quartos, cozinha, sala e um quintal grande nos fundos. Estava sempre arrumada e limpinha, diferentemente da sua, permanentemente bagunçada, sobretudo depois que sua mulher o abandonara.<br />
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No sonho, ele espreguiçava-se no sofá, diante da televisão, como costumava fazer quando adolescente. Sua mãe trabalhava como empregada doméstica no Rio e só vinha nos finais de semana. Sozinho em casa, tinha liberdade total para trazer os amigos, ver televisão, jogar baralho, namorar. <br />
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O silêncio a seu redor o fez despertar. Os vendedores haviam sumido. Estava solitário com sua banca móvel de cds na calçada que fica entre a Rio Branco e a estação do metrô. Sentiu um calafrio e olhou pra trás. Uma tropa de uns cinquenta guardas municipais marchava a toda velocidade na sua direção. Fechou a banca, pegou a mochila e preparou-se para correr na direção da rua da Assembléia. Mas um outro grupo de guardas fechava aquela saída.<br />
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Estava cercado. Lembrou-se vagamente de cenas de filme em que o personagem sempre consegue escapar dos perseguidores. Infelizmente, não estava num filme. "E se fizerem um filme sobre mim, aposto que vou me foder do mesmo jeito. Filme brasileiro sempre fode o herói", pensou. Esperou, resignado, a guarda chegar.<br />
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Sentiu um cansaço profundo e fechou novamente os olhos. O cassetete golpeou-lhe no lado da cabeça, lançando-o ao chão, desacordado.<br />
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Acordou minutos depois, com ajuda de colegas que voltaram ao mesmo ponto após a guarda ir embora. Sua cabeça repousava numa poça de sangue. A cacetada abrira uma ferida profunda na têmpora esquerda. Os novos cassetetes da guarda tinham uma saliência de metal extremamente cortante. Embora os recrutas fossem orientados para não bater com demasiada força, dificilmente eles seguiam as instruções. Ainda mais depois que um camelô, revoltado com a perseguição das autoridades, deu um jeito de despejar uma garrafa inteira de álcool num guarda e riscar um fósforo.<br />
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Reis conseguiu levantar-se e dirigiu-se, cambaleante, até o Souza Aguiar, no Campo de Santana, para fazer um curativo na cabeça. <br />
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Enquanto esperava na fila, repassou mentalmente os seus últimos trabalhos. Antes de tentar a sorte como camelô, havia trabalhado dois meses numa firma especializada em mudanças. Ganhava dois salários mínimos, o que não era de todo mal. Mas o serviço era puxado demais. Um dia simplesmente não conseguiu acordar a tempo de chegar às seis horas no escritório da empresa, no Méier e fora demitido por telefone. <br />
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Antes disso, havia sido ajudante de pedreiro, pintor de paredes e vendedor de amendoim.<br />
Sentado na fila da emergência, com fortes dores e sentindo-se extremamente cansado, um pensamento ruim surgiu naturalmente, como um bálsamo oferecido pelo diabo.<br />
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Reis tinha vinte e cinco anos, terminara o segundo grau e era um rapaz bastante inteligente e honesto. O pensamento que teve no Souza Aguiar foi motivado, em parte, pela situação degradante em que se encontrava. Sujo de sangue, faminto, triste e indignado com a agressão gratuita do guarda, seu estado de espírito estava suficientemente vulnerável para deixar as portas abertas ao mal. O mal, no caso, era um plano que havia conversado, meio por brincadeira, com um amigo do bairro, no final de semana anterior, quando jogava sinuca num botequim próximo da sua casa.<br />
Depois de três horas de espera, foi atendido por uma enfermeira jovem, muito bonita, mas que estava com péssimo humor. Enquanto fazia o curativo nele, conversava com uma colega sobre política. Protestava em altos brados contra as autoridades responsáveis pela caótica situação dos hospitais da cidade. Reis, que possuía lá seu truques de sedução, fez ela mudar de assunto, e conseguiu trocar sua expressão severa, fechada, por um lindo sorriso, e saiu do hospital com seu telefone e endereço.<br />
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Ela chamava-se Ana Maria. Era uma mulata esbelta, inteligente, com vinte e dois anos e, por uma feliz coincidência, também morava na Baixada, em São João do Meriti.<br />
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Veja só, pensou Reis, há males que vem para o bem. Todo fodido, a cabeça arrebentada, estômago e bolso vazios, tivera uma idéia audaciosa que poderia melhorar sua vida e conhecera uma mulher maravilhosa pela qual (talvez por estar há meses sem fazer amor) já estava perdidamente apaixonado.<br />
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Reis teve que pedir dinheiro emprestado a um colega para voltar pra casa, pois não tinha vendido um cd naquele dia e a guarda havia apreendido todo seu material. Chegando em Nova Iguaçu, duas horas depois, devorou o cacho de bananas que estava sobre a mesa da sala. Era a única coisa comestível que havia por ali . Quebrou o porquinho onde guardava as moedas e teve a grata surpresa de contabilizar quase vinte reais. Foi direto para o botequim do Porco, há dois quarteirões de sua residência, onde esperava encontrar Wellington, seu futuro cúmplice.<br />
Seu amigo não estava lá, mas Reis mandou um moleque chamá-lo em sua casa. Pediu uma cerveja e pastéis, e ficou a observar o movimento da rua. Lembrou-se de alguma coisa, mexeu no bolso e achou o telefone de Ana Maria. Sentiu uma sensação gostosa, uma comichão no estômago, como que uma cosquinha de amor.<br />
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Wellington chegou meia hora depois, com cara de quem havia dormido a tarde inteira. Desempregado e sem disposição nenhuma para trabalhos pesados, Wellington vivia às custas da avó num barracão apertado permanentemente ameaçado por uma encosta assassina.<br />
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O principal objetivo de vida de Wellington era alugar um barraco melhor para ele e sua avó, com pelo menos um quarto para cada um, um bom banheiro e uma cozinha razoável. E bem longe dos desmoronamentos de terra.<br />
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Apesar de seus trinta e dois anos intensamente vividos no meio da malandragem, Wellington tinha uma aparência bem conservada. Parecia ter uns vinte e cinco, idade de Reis, e também era um rapaz bonito, que fazia relativo sucesso entre as moças do bairro.<br />
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Reis contou ao amigo o drama da tarde e exibiu, orgulhoso, o telefone da enfermeira gostosa que conhecera no Souza Aguiar. Por fim, falou sobre sua decisão de mudar de vida.<br />
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- Ah, finalmente, disse Wellington. Quer dizer então que o bom moço agora vai virar malandro?<br />
- É, mérmão. A barra tá pesada. Tem jeito não. Vamos realizar aquele plano que a gente falou.<br />
- Opa! Tá falando sério? <br />
- Tô decidido a sair dessa vida miserável. Chega de sofrer.<br />
- Falou e disse, my brother. Vamos às estratégias.<br />
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O plano de Reis e Wellington era relativamente simples. Comprariam pó e maconha na boca do Peixe, uma boca que vendia no "atacado", ali mesmo em Nova Iguaçu, e viajariam para Búzios, a fim de revender a droga por lá a um preço dez vezes superior.<br />
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Desembarcaram na rodoviária de Búzios numa quinta-feira chuvosa. Mas a previsão do tempo, que viram na TV, dizia que o final de semana teria sol, muito sol. <br />
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- Tomara mesmo que tenha sol. Só falta a cidade ficar vazia e a gente micar com toda essa parada, comentou Reis.<br />
- Esquenta não, camarada. Mesmo se chover, tem sempre gente na cidade, respondeu Wellington.<br />
Nessa primeira noite, não tinham onde dormir nem dinheiro pra pagar pensão. Tinham conseguido apenas, emprestado, o dinheiro da passagem. Caminharam até o centro, apreensivos com o clima, e esperaram a noite chegar. <br />
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Deram sorte. A chuva parou e a noite ficou animada. Nada em comparação com o que se esperava para o dia seguinte, sexta-feira, e para sábado, mas mesmo assim havia bastante gente para os dois começarem a se movimentar e a se enturmar. Em pouco tempo, conseguiram a primeira venda para três gringos que bebiam cerveja num bar. Dois papéis de vinte e três trouxinhas de maconha, dez reais cada. Mais tranquilos com o capital adquirido, combinaram de se separarem. Reis iria atrás de uma pensão barata para passarem a noite e Wellington continuaria sondando a área em busca de outros clientes.<br />
<br />
Reis encontrou vaga numa casinha de pescador, por vinte reais, incluindo café da manhã, e voltou ao centro para encontrar Wellington. O colega já havia conseguido realizar outra venda, dessa vez para um senhor de seus cinquenta anos, que bebia uísque no Chez Michou, uma creperia famosa localizada na principal rua do centro.<br />
<br />
Conforme a noite foi passando, os dois foram vendendo, aqui e ali, e aumentando seu capital. Quando este chegou a duzentos reais, Wellington sugeriu que parassem de circular, para não dar muito na vista, e agissem como turistas comuns. Consumiram um pouco das drogas que traziam e flertaram com garotas.<br />
<br />
Às duas da manhã, as ruas estavam quase vazias e os dois resolveram descansar para o dia seguinte, que prometia muito trabalho.<br />
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Acordaram tarde, com o sol forte querendo invadir o quarto pelas frestas da janela. A mulher do pescador havia deixado, sobre a mesa ao lado da porta, uma bandeja com uma jarra de suco de laranja e dois sanduíches de pão com presunto. Comeram e saíram, com planos de caminhar até a praia de Jeribá.<br />
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Reis ainda sentia um pouco de dor pelo ferimento na cabeça e pediu para Wellington que andassem lentamente. Foram observando as pousadas luxuosas, as ruas limpas, bem cuidadas, de paralelepípedos, os jovens bonitos, brancos, alegres, que passavam em automóveis de design arrojado com pranchas de surf amarradas sobre o capô.<br />
<br />
Como deve estar Ana Maria?, pensou Reis, enquanto tirava da carteira o papelzinho com o telefone dela. Puxou o celular do bolso, respirou fundo, tomou coragem e ligou. Estava nervoso. <br />
Wellington tinha entrado num botequim para comprar cigarros.<br />
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- Alô? <br />
Reis ficou atônito quando ela atendeu no primeiro toque. Por alguns segundos, não soube o que dizer. <br />
- Alô, ela repetiu.<br />
Por fim, ele disse:<br />
- Oi Ana, sou eu.<br />
- Oi!!! Até que enfim me ligou. Pensei que tivesse perdido meu telefone.<br />
- Imagina, guardei aquele papelzinho com mais cuidado que se fosse uma nota de cem reais.<br />
- Tá bom, vou fingir que acredito. Onde você está?<br />
- Estou em Búzios. Vim fazer um trampo aqui.<br />
- Uau, que chique! Posso saber que trampo é esse?<br />
- Depois de te conto, agora tenho que desligar. Amanhã te ligo de novo.<br />
- Ok, beijo grande.<br />
- Falou, tchau.<br />
<br />
Wellington tinha voltado e olhava sorrindo pra ele. Escutara a conversa quase toda.<br />
<br />
- O que acha que ela vai pensar? Se você contar a verdade?<br />
- É simples. Ela não vai mais querer falar comigo.<br />
- É, pode crer. Mas se você aparecer cheio da grana, ela bem que vai gostar.<br />
- É claro, mas eu tenho que inventar uma boa mentira para justificar esse dinheiro.<br />
- Sabe o que pode ser? Você pode falar que é representante comercial de uma empresa ligada ao setor de turismo. Você viaja para essas cidades pra vender pras pousadas e agências de turismo. Que tal?<br />
- Que produtos?<br />
- Sei lá. <br />
- Tá legal. Depois eu penso nisso. Chegamos.<br />
<br />
A praia de Jeribá tinha uns três ou quatro quilômetros de extensão e era margeada por pousadas e hotéis. Àquela hora, dez horas da manhã, havia alguns grupos de turistas estendidos na areia. Os dois tiraram a camisa, pisaram a areia fofa e puseram-se a caminhar pra lá e pra cá. A hora era boa para vender maconha. Pegaram um pouco e apertaram um baseado, que fumaram andando. Quando viam um grupo de jovens, se aproximavam um pouco para que eles sentissem o cheiro. Se ficassem olhando com cara de fome, então Wellington os abordava, e perguntava se queriam fumar também. Os dois passavam a bagana quase no fim para o grupo e Reis dizia:<br />
<br />
- Estamos atrasados, temos que sair fora. A gente tem mais. Querem comprar?<br />
<br />
Eles tinham trouxinhas de dez reais e também quantidades maiores, de vinte e cinco e cinquenta gramas, que carregavam na mochila. Um grupo comprou cinquenta gramas por cem reais. Outro comprou três trouxinhas de dez.<br />
<br />
Às três horas da tarde, já tinham faturado trezentos reais. Sentaram-se a uma mesa na praia e pediram cerveja. O dia prometia gordos lucros para a dupla. Até o momento, não haviam topado com nenhum policial. <br />
<br />
Estavam almoçando um peixe frito quando uma jovem loura, com sotaque estrangeiro, se aproximou e perguntou se podia sentar-se com eles por um instante. Estava de biquini e tinha um corpo muito bonito, com seios volumosos. Apresentou-se como Mika, disse que era russa e estava com um grupo de mais cinco mulheres. Ela era a única que sabia falar português, porque seu pai era brasileiro. Eram todas modelos e vieram ao Brasil para participarem de um festival de moda. O evento tinha acabado e decidiram ficar uns dias para conhecerem melhor o país.<br />
<br />
Explicou que estava observando os dois há algumas horas e percebeu que eles tinham o que interessava a elas. Foi direto ao assunto. Perguntou se eles não queriam ir à casa delas à noite para fazerem uma festinha antes de saírem para a cidade. Elas curtiam tudo, pó, maconha, álcool. <br />
Reis e Wellington se entreolharam, um pouco desconfiados. Estava bom demais pra ser verdade. Perguntaram se elas estavam dispostas a pagar pela droga consumida. Claro que sim, respondeu Mika. Então, tá combinado, eles disseram, às oito horas da noite a gente passa lá. Ela deixou o endereço da pousada onde estavam hospedadas e saiu, sua bunda perfeita hipnotizando os dois amigos.<br />
<br />
*<br />
Os dois amigos voltaram à casa onde estavam hospedados, tomaram banho, arrumaram-se e um pouco depois das oito viam-se diante da sofisticada pousada Sereias. A recepcionista era uma gordinha de rosto bonito, olhos verdes, que os recebeu com um sorriso triunfal.<br />
<br />
- Olá, viemos ver a Mika.<br />
- Tudo bem, ela já me avisou. Elas estão no bar da piscina. Siga as setas. <br />
<br />
A pousada Sereias era inteiramente arborizada, de modo que os dois sentiram-se num bosque. Estavam ansiosos e pegaram a entrada errada, deram umas voltas pela pousada, observando os bangalôs enormes e individualizados. Escutaram as vozes e os risos e chegaram à piscina. Dois delas estavam na água, nadando, e as outras três estavam sentadas à mesa, bebendo água de côco. Fizeram uma enorme festa quando os viram.<br />
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- Viva! Chegaram nossos heróis.<br />
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Eles estavam um pouco encabulados diante de tantas mulheres bonitas. Reis bem que tentava evitar, mas não conseguia deixar de pensar em todo tipo de orgia possível. Puxaram duas cadeiras e sentaram-se à mesa. Mika ainda vestia biquini e perguntou se eles queriam beber alguma coisa. Tudo por conta da casa.<br />
<br />
- A gente agora vai se arrumar. Fiquem aqui, bebendo à vontade. Daqui a pouco a gente vem chamar vocês. Estamos nos bangalôs Fernando de Noronha e Ilha da Fantasia.<br />
<br />
As duas que estavamo na piscina saíram. Uma delas estava de top less e Reis não conseguiu esconder o agradável susto que levou com isso. Teve uma ereção instantânea. As duas sorriam pra eles, pegaram roupões pendurados nos descansos à beira da piscina e seguiram as outras na direção dos bangalôs.<br />
<br />
Quando ficaram sozinhos, os dois não sabiam o que conversar. Olhavam um para o outro e riam sem saber porquê. Reis quebrou o silêncio pedindo duas latinhas de cerveja ao garçom.<br />
<br />
- Ê ê, Reis.<br />
- Ê ê, Washington.<br />
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Com expressão amalucada, os olhos perdidos no azul da piscina, Washington continua:<br />
<br />
- Dessa vez a gente se deu bem.<br />
- Escuta. Vamos cuidar, antes de tudo, de vender a parada e embolsar o dinheiro. Não vamos deixar essas minas aí nos emgambelarem.<br />
- É claro, meu!<br />
- Depois, se rolar, a gente faz a festa!<br />
- Uú uú uú. Yeah!<br />
- Porra, Washington, vou te tocar a real. Tô há dois meses na maior seca. <br />
- E eu? Há uns seis meses que não vejo uma xoxotinha decente.<br />
- Ué, tu não tava pegando a Adriana?<br />
- Falei DECENTE, meu. Aquilo é um tribufu. Não vale. Há uns seis meses que só pego monstro.<br />
- Tá bom. Tá bom. Vem cá. Será que vai rolar uma suruba.<br />
- Upa lelê! Deus é pai! <br />
- Não fala em Deus, seu prego. Traz má sorte. Cê acha que Deus gosta de sacanagem?<br />
- Eu acho que gosta. Se for uma sacanagem saudável, acho que Deus se amarra.<br />
- Porra! Sabe que eu lembrei agora?<br />
- Do quê?<br />
- Daquela sacanagem que fizemos com as duas primas, filhas do seu Zé.<br />
- Caralho! Você lembra daquilo? <br />
- Aquela noite foi inesquecível.<br />
<br />
Os dois lembraram os detalhes picantes daquela noite e falaram ainda de outras aventuras que viveram juntos. Uma das moças veio chamá-los. Falava inglês e gesticulava. Os dois a seguiram até o bangalô. A porta se abriu e os três entraram. Mika veio falar com eles. <br />
<br />
- O que vocês trouxeram aí pra gente?<br />
- Depende. Quantos vocês tem para gastar?<br />
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Mka puxou um bolo de notas do bolso de trás e estendeu a eles. <br />
<br />
- Isso é o bastante?<br />
<br />
Ela assumiu uma expressão séria, quase triste, que combinava muito bem com sua maquiagem pesada, dark.<br />
<br />
- Quanto tem aqui?<br />
- Duzentos dólares. <br />
- Em real dá quanto?<br />
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Mika olhou curiosa para Reis, como que espantada por ele não saber a cotação do dólar. <br />
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- Uns quinhentos reais.<br />
- È muito dinheiro, dá pra vocês curtirem a noite inteira.<br />
Ela dá um pulinho de alegria, seguido de um gritinho agudo. <br />
- Dá mesmo?<br />
- Tranquilo. Vocês vão se divertir à pampa. <br />
<br />
Reis pronunciou essa frase em voz mais alta, esquecendo que as outras não entendiam português. Mas a maneira como ele falou, o gesto magnânimo e o sorriso franco, transmitiram uma alegre confiança às meninas que prestavam, ansiosamente, atenção à conversa. <br />
<br />
Uma das meninas salta pra fora da cama e vem falar com Mika, que responde no idioma delas; volta-se pra eles e diz:<br />
<br />
- E aí, podemos começar?<br />
Reis olhava fascinado para a moça que viera falar com Mika. Usava um shortinho apertado e uma camiseta cortada acima do umbigo. Era a mesma que saíra da piscina de top less.<br />
Mika surpreendeu o olhar de Reis, mas aparentemente não se importou. Falou sorrindo:<br />
- Vai lá no banheiro e estica umas carreiras pra gente.<br />
- É pra já.<br />
Os dois foram em direção ao banheiro, nos fundos do quarto. Mika segurou o braço de Washington e falou:<br />
- Fica aqui. Deixa ele ir lá sozinho.<br />
<br />
Quando entrou no banheiro, Reis teve outra grata surpresa. Uma das moças saía do chuveiro totalmente nua. Não pareceu importar-se com a presença de Reis. Pelo contrário, sorriu-lhe lubricamente, cortando a respiração dele, que sentiu um calor enorme crescer dentro de si. Ela colocou um roupão branco, mas não o amarrou e colocou-se ao lado de Reis, diante do espelho. Ele não conseguia tirar os olhos dos enormes peitos da moça. Teve vontade de perguntar se eram de silicone, mas lembrou-se que ela não falava português. Quase esticou o braço para tocar mas conteve-se e desviou o olhar. Pegou um papel no bolso da pochete, abriu-o e despejou o conteúdo no mármore verde escuro da pia.<br />
<br />
Na sala, Washington conversava amenidades com Mika, deleitando-se com a beleza voluptuosa das modelos. <br />
<br />
- De que países vocês são? - perguntou Washington.<br />
- Duas são da Noruega, uma da Alemanha, outra da Rússia. Eu sou dinamarquesa. Essa aqui - indicou a moça a seu lado - é Chris. Ela é da Noruega.<br />
<br />
Chris sorriu timidamente e balbuciou uma frase lá na língua dela. Tinha olhos azuis, um metro e oitenta e um corpo maravilhoso. Apontou para as duas que estavam deitadas na cama, assistindo a conversa:<br />
<br />
- Viki - disse, apontando para a morena de calça preta - "und" Monika - indicando a outra, de cabelos curtos e magérrima. <br />
<br />
No banheiro, Reis tentava disfarçar a ereção. Mas a modelo a seu lado percebeu e se aproximou. Pegou a mão direita dele e trouxe-a até seu peito. Reis estava quase enlouquecendo de tanto tesão. Ela deixou-o massageiar seus peitos, enquanto tocava em seu clitóris com a mão esquerda. Depois ela se abaixou, abriu o ziper da calça dele e aplicou o melhor boquete que Reis experimentara em toda a vida.<br />
<br />
Washington não podia ver o que ocorria no banheiro, mas se visse não se espantaria, porque também já estava bem ocupado. Mika ligara o som e dançava junto com as outras. Era uma dança absurdamente sensual, que o mantinha numa espécie de transe. Uma delas tirou a camisa. As outras seguiram-na e ficaram todas de top less. Washington não acreditava no que via. Aí as quatro fizeram uma espécie de trenzinho e foram até ele. Ele ficou na frente do trenzinho, sentindo os seios volumosos de Mika em suas costas.<br />
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A campainha tocou e todos pararam de fazer o que estavam fazendo. Mika desligou o som. As moças vestiram a camisa. No banheiro, a moça interrompeu o boquete, amarrou o roupão e olhou assustada na direção da sala. Mika fez um gesto e ela fechou a porta do banheiro e trancou.<br />
Mika foi abrir a porta. Era o serviço de quarto, trazendo duas garrafas de champagne, uma garrafa de uísque, gelo e uma travessa com vários tipos de salgadinhos.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-87106764917327533222010-11-26T00:33:00.002-08:002010-11-26T00:33:42.568-08:00Degenero ao sol-cão da minha criseInversamente, sou feliz no desespero: urubu sobrevoando carniças de vontades insatisfeitas. Estou solitário em minha tentativa de enlouquecer-me - triste liberdade que apodrece na agonia suja dessa noite.<br />
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Deus cego? Enchentes, furacões, maremotos, tudo sou, tudo devoro no afã de amar o mundo. Estuprei-me furiosamente no bar, onde almoçavam tubarões de gravata, proxenetas intelectuais sem orelhas, cujos mamilos brilhavam como sóis de plutônio.<br />
<br />
Já sei: serei a favor das guerras. Inventarei novas formas de exploração, e uma nova risada de cinismo. Em mim, vivem pássaros angustiados, asas feridas e olhos argutos. Corromper-me-hei, mas não ao ponto de me tornar um deles, os meninos da televisão.<br />
<br />
Não querem histórias? Em sacrifício, cortarei os pulsos de um outro eu, e beberei o sangue como quem se embriaga de champagne diante do pai morto. É isso! Serei infame, como eles. Como eles!<br />
Falo do amor, mas subentende-se que é sobretudo o ódio que me move. Doce ódio pelo insosso destino. Não vou! Não serei arauto dos desvalidos de plástico. Meu Não será um sim sangrento, armado, feroz e triste. Aurora envelhecida. Dez mil anos de sofrimento e compreensão produziram bilhões de imbecis. Já disse: defenderei as guerras, os bandidos, os traficantes. Morte às mães, às tias, aos jornais, aos amigos. Solidão e guerra, bandeiras do meu novo eu cínico: sucesso e dinheiro virão rápido, como cães, um suicídio.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-16727013975160658102010-11-26T00:33:00.000-08:002011-03-19T09:59:09.662-07:00Os fins dessa tristeza exilada<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgdOohXWmpQq4G08tdaFjSHJvMVkIgAZqUG4a2YK_tNhj4wMVl8ZdxM7v21ToqeeehbqCUEQ2d_P25SmhAg9R13hhtldVcDKt5scYEOV53Gze8ZLVYOFmZPaE3xv73Tg3jrPGvNpZzgFkHs/s1600/porto-alegre-agenda-fundacao-ibere-camargo.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="238" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgdOohXWmpQq4G08tdaFjSHJvMVkIgAZqUG4a2YK_tNhj4wMVl8ZdxM7v21ToqeeehbqCUEQ2d_P25SmhAg9R13hhtldVcDKt5scYEOV53Gze8ZLVYOFmZPaE3xv73Tg3jrPGvNpZzgFkHs/s400/porto-alegre-agenda-fundacao-ibere-camargo.jpg" width="400" /></a></div><br />
<div style="text-align: center;">(Iberê Camargo)</div><br />
Se foi aos poucos ou de repente, não importa. A consciência dessa tristeza pousou-me nos ombros como um corvo gigante, cego e rouco, o qual, ao invés de gritar "nunca mais", cantarolava uma melodia infantil, uma melodia louca, como quem faz as unhas antes de se jogar do trigésimo-sétimo andar.<br />
<br />
Tentei de tudo, todos os tipos de álcool, todas as drogas enveneneram-me o sorriso bastardo que eu cultivava, até pouco tempo, como derradeiro resquício de humanidade. O desespero, único recurso estético permitido aos doentes, também não me serve mais. Nem desesperado, nem triste, nem alegre. Nem louco, caralho. Nem ser louco me é permitido. Resta-me essa frieza amarga, lisérgica, cheia de ferimentos infeccionados em sua superfície de sonhos destruídos. E a vaidade, claro, a tortura eterna, a glória anti-infinita e negra do fracasso.<br />
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Ah, as guerras que lutei para ser um outro. Terminei sendo odiosamente eu mesmo, meus fantasmas, absorvendo os defeitos mais temidos que testemunhei na família. Por fim, exilei-me em atitudes discretas, em porres histéricos, cortei os braços para ver jorrar meu sangue contaminado.<br />
Não quero filhos, nunca! Quero exterminar minha raça, presa em equívocos bolorentos, preconceitos morais e imbecilidades metafísicas. Sim, como se houvesse uma aids metafísica que me consumisse, que destruísse, gradativa e inexoravelmente, minhas defesas morais, deixando-me em face do meu reflexo mórbido, pálido e constrangido.<br />
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Impossível deletar a alma, merda. Reescrever minha personalidade desde o início, como quem renega um conto e muda de assunto. Mas eu já fui feliz. Cervejas geladas e mulheres carinhosas me consolaram em tardes quentes. Já chorei escutando Bob Dylan e li quatro vezes Grande Sertão Veredas. Dei risadas lendo o velho Buk e comi putas em homenagem ao grande Miller. Que me adiantou? Não fiquei mais inteligente, nem mais forte. Pelo contrário. Arrasto uma carcaça pesada, ultra-consciente e, horror dos horrores, nem triste mais eu posso ser!<br />
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Enfim, não posso ser nada. Olho a folha em branco tomado de um vago terror. Escrevo, desde sempre, como forma de terapia, e me irrito ainda mais. Estou só com meus fantasmas. Minhas guerras fúteis. Minha miséria.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-46778015603171918322010-11-26T00:32:00.000-08:002010-11-26T00:32:01.555-08:00Um Filho Morto na Praça RooseveltNão, Mirisola, não vou vender essa resenha por trezentos reais para o Prosa e Verso do Globo. Já bastam os “coelhos despachados a pontapés” da minha vida, oscilando entre o tédio da Fispal e a bebedeira na praça Roosevelt. Até porque eles nunca iriam pagar. Aliás, o que eles publicam ali não é resenha. É informe publicitário.<br />
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Tudo porque resolvi reler o livro, e o negócio bateu mais forte que a primeira vez – olhe que já tinha sido foda (eu nunca acreditei em primeiras vezes, as melhores sensações sempre vêm depois). Talvez porque estou em São Paulo, me sentindo às vezes um caipira, prestando muita atenção aos carros que vem de todas as direções. As encruzilhadas de sete pontas.<br />
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Sabe, cara, eu sempre achei – o que foi o meu erro capital – que a tristeza poderia me redimir. Ou seja, se eu ficasse muito triste, eu seria perdoado. Da minha covardia, principalmente. Essa mania de pedir desculpas. Fiz isso de novo, há pouco, depois de jurar que eu seria diferente. É foda... mas foda-se. Pra ser livre, a gente tem que brigar um pouco, fazer umas sacanagens, decepcionar os tolinhos e magoar os velhos frustrados.<br />
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Um escritor disse que toda literatura nasce da humilhação, ao que não dei muita bola. Me pareceu uma dessas frases de efeito. No entanto, a citação me parece pertinente ao Azul, um livro que, a meu ver, trata basicamente do sentimento de humilhação.<br />
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Todavia o escritor “é um bicho que fode”, e também um impotente (sim porque, infelizmente, a literatura nunca será uma foda em si), que se desespera porque vê o amor vencer o sexo e o amor, ah, o amor – o amor é uma merda. Bom mesmo é foder sem amor, mesmo fodendo aquela que você ama.<br />
Eu quero escrever uma resenha do Azul sem falar da classe média e seus temores & vergonhas & podridões e não vou não vou. Foda-se a classe média. Ou antes, viva a classe média. Já chega meus ARTIGOS POLÍTICOS, que transferiram a dor que eu sentia no estômago (úlceras anti-colunismo, que besteira) para os tendões do meu braço direito. Voltei à cerveja.<br />
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Aliás, o que a classe média tem a ver com o teu livro, mêu? Nada, nadica, nonada. O teu livro – na visão que eu tive, enquanto descia a rua da consolação, pensando bem rápido, as palavras borbulhando, sem sequer imaginar que, horas mais tarde, tomaria uma surra na sinuca do Bortolotto – o teu livro é uma sinfonia de Stravinsky, ou melhor, um solo de Charlie Parker, e os caras que não perceberam isso são uns boçais. Os caras reconheceram o próprio rabo, isso sim, porque o rosto que emerge do livro não é do autor, é o rosto em si. Ou antes, o próprio cu. O cu em si. Um cu arrombado e sujo de sangue e fezes. O livro é música, cara, música clássica produzida com uma sintaxe louca, apaixonada, uma sintaxe bêbada, impossível, com bolsas embaixo dos olhos.<br />
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No dia seguinte, depois que terminei de ler o livro na cama, desci e fiquei na frente do hotel, bestando, olhando a rua, olhando uma garotinha que segurava o braço da mãe e chorava quietinha. Ela tinha trancinhas, a mãe era nordestina, nem ligava pro choro da filha. Tão triste, tão triste, tão humano, mas nem a tristeza me redimia. Não descansaria enquanto não botasse pra fora pelo menos uma parte da caralhada de coisas que pensei, subindo e descendo a rua augusta, bebendo umas cachaças no bar do Trovão, rodopiando, em transe, pelos corredores idiotas do parque de exposições Anhembi, fraudando a sala de imprensa de uma feira de alimentos para falar de literatura (o pior é a bicha que não pára de gritar histericamente do meu lado, não respeita nem a porra de uma sala de imprensa, o escroto).<br />
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Você reclamou de uns caras que vinham tentando te imitar. É melhor você se acostumar com isso. Picasso enlouqueceria se fosse implicar com todo mundo que resolveu fazer cubismo depois dele. Vale o mesmo para Chuck Berry. Eu mesmo meio que tô te imitando nessa resenha, sendo que, ao menos, tenho a elegância de assumir publicamente.<br />
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Voltando à humilhação. Porra, me senti humilhado. Ainda tô assim. Senti vontade de queimar tudo que escrevi. Começar de novo, sei lá. Talvez ainda haja tempo. Não vou te imitar. Aliás, antes que eu esqueça, vá se fuder (na eventualidade de você ter pensado isso). Contudo, a arte, depois que é publicada, vira patrimônio coletivo. Van Gogh não seria Van Gogh se não estudasse os pintores contemporâneos de Montmartre. O velho Dosty não seria quem foi não fosse um leitor assíduo de Tostói, Gogól e Puschkin, dos quais ele foi o brilhante continuador. A humilhação, disse outro escritor, não advém da vergonha por um erro pessoal, cometido acidentalmente, mas pela constatação de que somos o que somos e não há como mudar isso.<br />
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Ah, meu Deus, “que bosta, puta que pariu”, a liberdade sintática, estilística, narrativa do Azul do Filho Morto representa um marco importante na literatura brasileira e sabe porquê?<br />
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Antes, uma observação: sei que você não gosta muito do Rosa, e faz bem, mas eu gosto pra caralho daquele sertanejo sabidão, e no entanto achava que o filhodaputa tinha matado boa parte das minhas esperanças. Agora me sinto mais leve, embora humilhado. E triste pelos coelhos capotados, a morte do gente boa, a morte do meu pai, essa dicotomia dilacerante entre uma escrita de merda (às vezes) e uma razoável e firme e cruel intuição literária.<br />
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Bem, é um marco porque consolida uma liberdade que vem sendo buscada há tempos pelos escritores, uma liberdade não gratuita, um surrealismo refletido, existencial, realista mesmo. É melhor que (com perdão aos que gostam) as bobeiras holliwoodianas dum Agripino de Paula. Mais verdadeira (ô palavrinha besta, mas aqui vem com um sentido de autenticidade, força, verossimilhança) que os delírios non-sense do Campos de Carvalho. Sobretudo ajuda a libertar o meio literário da influência (não me incluo entre as vítimas dessa influência) dos analfabetos auto-promocionais e dos burocratas da pirotecnia virtual.<br />
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“Eu devo ser uma ameaça pra vida saudável”, diz você no livro. Bem, isso é mentira. Ou melhor, um paradoxo, um daqueles antigos e deliciososo paradoxos da literatura. Tão antigos quanto a maçã (uma vaga num puteiro, pois sim; ou seria um livro?) que a serpente & cafetina & tutora ofereceu à Eva.<br />
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Afinal, não é o tipo de saúde que eu quero. Saúde de hamsters de laboratório. Porra, o Azul é a celebração da doença! Nascemos mongolóides. Um bando de retardadinhos empilhando cubos e “lambendo azulejos”. Só depois aprendemos a queimar a bunda das putas e atropelar mendigos - isso sem perder a aura santa dos estetas canalhas. Aí começa a verdadeira merda.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-74129497991812280212010-11-26T00:29:00.001-08:002010-11-26T00:29:40.316-08:00Os escritoresEu queria escrever um romance sobre escritores. O protagonista da história seria executivo de grande editora, que recebe a missão de pesquisar todos os sites e blogs de literatura no Brasil para encontrar grande talento literário ainda desconhecido da mídia e do público. A história seria contada como se o tal executivo atualizasse um blog, criado especialmente para que sua chefe monitorasse suas pesquisas. O blog seria acessível mediante senha, visto que a editora queria evitar que as concorrentes acompanhassem os resultados.<br />
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A história começaria mais ou menos assim:<br />
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Bom dia, Clara (já que você é minha única leitora, posso cumprimentá-la pessoalmente). Ontem passei a noite inteira navegando pela net. Estou organizando a pesquisa. Primeiramente, estudarei somente sites, depois passarei para os blogs. Ontem acessei dezenas de revistas eletrônicas de literatura. Notei que existem, basicamente, dois tipos de revista. Um é o tipo "puta", desculpe o termo, mas é perfeito para sintetizar o que quero dizer. Esse tipo dá para todos, publica qualquer um que envie texto, ou quase todos. Seus arquivos de contos e poemas acumulam uma quantidade incrível de contribuições. Neste segmento, há o Garganta da Serpente, o Releituras, o Paralelos, o Jornal de Poesia. Não me parece que haja um critério muito rigoroso de seleção.<br />
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O outro tipo de site é mais voltado para publicações de colaboradores fixos, apesar de aceitarem também, em menor escala, contribuições. Temos o Patife, o Bagatelas, o Storm.<br />
Temos alguns tipos que merecem menção especial, porque fogem das definições acima expostas. Como o Bestiário, revista mensal de contos e o Cronópios, que é bastante aberto à colaborações, mas publica principalmente textos das mesmas pessoas. O Arte & Política também tem essas características, sendo que os textos do próprio editor, Miguel do Rosário, são os mais repetidamente publicados. E por falar no Rosário, gostaria de chamar sua atenção para esse jovem escritor carioca, que produz poemas, contos e crônicas com frequência e intensidade invejável. Eu entrei em contato com ele e marcamos um encontro numa cervejaria. Depois lhe conto como foi.<br />
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Bom dia Clara. Hoje estou com uma ressaca horrível. Fui me encontrar com o tal Miguel do Rosário, numa cervejaria que ele mesmo escolheu na Lapa, e acabei me excedendo no consumo de álcool, por isso não espante com a conta que lhe mandei em email anterior. Bem, é o seguinte. O tal Rosário é uma pessoa extraordinária, até certo grau de alcoolismo. Parece ter lido todos os livros e conta histórias fabulosas que lhe aconteceram ou não lhe aconteceram como ninguém. É uma pessoa bem excêntrica, a começar pela aparência: é cego de um olho e manca da perna direita. Mesmo assim, não deixa de ser elegante e, porque não dizer, até bem atraente. É alto e muito magro, com feições algo vulgares que lhe conferem uma certa virilidade. Digo tudo isso porque você me pediu, mas não sei o que isso tem a ver com a linha editorial da empresa.<br />
Por sua conversa, notei que ele se interessa muito por artes plásticas e cinema. Trouxe-me também um grosso maço de papéis com seus poemas. Disse-lhe que só nos interessávamos por contos e romances, mas ele fez questão de recitar-me algumas poesias.<br />
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Também trouxe os originais de seu primeiro romance, Parabellum, uma história muito louca de um cineasta que decide fazer um filme sobre Lampião, o cangaceiro, e descobre que há um tesouro enterrado em uma fazenda do Sergipe.<br />
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Aí fomos bebendo, bebendo, até que saímos daquele bar e fomos dar umas voltas na rua e escolher outro boteco. Ele levou-me até a esquina da Riachuelo com a Lavradio e sentamos-nos num bar cheio de putas e travestis. Aí a coisa começou a degringolar.<br />
Sem nenhum motivo aparente, ele começou a me ofender, da forma mais gratuita e grosseira. Mandou-me tomar no cú e acusou-me de ser um vendido para o capitalismo mais rasteiro do terceiro mundo. Bateu a mão no peito e se auto-intitulou "anarquista republicano". Disse que não queria se vender a nenhuma editora estrangeira e que iria publicar ele mesmo seus próprios livros. Falou assim mesmo: "não quero saber de porra de editora grande nenhuma. Vão se fuder! Você e sua chefe escrota!".<br />
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Um final de noite lamentável. Nem me dignei a responder uma estupidez daquele quilate. Fiquei muito frustrado porque o rapaz tinha me parecido, a princípio, bastante inteligente. Como pensa ele em ganhar a vida com literatura, se já começa xingando seus editores? Só pode ser burro ou doente mental. Levantei-me, deixei um dinheiro para pagar a conta, chamei um táxi e fui embora. Pela janela do carro, ainda o vi fazendo um gesto obsceno para mim. Enfim, o rapaz tem talento, mas sem nenhuma condição de ascender socialmente ao mundo dos escritores famosos.<br />
Hoje à noite vou me encontrar com um outro jovem escritor desconhecido. Seus textos não são lá grande coisa, mas me parece que é muito mais educado. De qualquer forma, continuo pesquisando. Até mais.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-25262423576482945122010-11-26T00:26:00.001-08:002011-07-04T16:13:53.394-07:00Os condenados<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2hUPQFOcGehDa_qS3Sd9stQsm_P-G8h3ixL0Snl9T1RH1l2x9K2hOoKTJ3Fn7DvVsMv6y60Ue1Y5zuDpSudE2RtaHbEVQ5G0DDFD_EOEZ4LHRTKCWZ3pKAdhbgNsumiBlR6YVjMwUFxnX/s1600/inferno1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="218" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2hUPQFOcGehDa_qS3Sd9stQsm_P-G8h3ixL0Snl9T1RH1l2x9K2hOoKTJ3Fn7DvVsMv6y60Ue1Y5zuDpSudE2RtaHbEVQ5G0DDFD_EOEZ4LHRTKCWZ3pKAdhbgNsumiBlR6YVjMwUFxnX/s400/inferno1.jpg" width="400" /></a></div><br />
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No verão ocorreram os piores dias que passei no inferno. Mas no começo, quando cheguei, caído de um precipício no qual uns demônios me lançaram por diversão, achei tudo muito bonito. Havia flores e um sol forte brilhava no meio do céu azul. O gordinho de óculos, carregando um pedaço de computador embaixo do braço, estava lá, e me sorria. Reconheci-o como editor de um site cultural, e perguntei o que ele estava fazendo ali. Ele não respondeu. Encarava-me com ar estúpido. Um outro rapaz que passava, nesse momento, vendo-me fazer perguntas ao gordinho, intervém, educadamente. "Ele não fala, nem escuta", informou. "Ué, por quê? Logo ele, que falava tanto...", perguntei. O rapaz, que pelo jeito, era bem informado, explicou-me que esse era um de seus castigos, porque falou muito e muita besteira durante a vida. Como não havia escutado nada do que diziam seus contemporâneos, também fora condenado à surdez. "Mas ler ele pode, não?", indaguei, intrigadíssimo. "Bem, não exatamente... Ele carrega no bolso um livro do Rubem Fonseca, traduzido para o chinês. O negócio é que toda a vez que ele abre o livro, toma um choque elétrico terrível", disse o rapaz.<br />
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Deixei o gordinho ali, com seus estranhos castigos, e continuei a andar, aflito por saber quais seriam os sofrimentos que ali me esperavam...Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-1003054955850576212010-11-26T00:22:00.003-08:002010-11-26T00:22:55.611-08:00Romance BotequinalDes'que decidiu ser vagabundo (dois dias atrás, quando bebia sozinho num bar, algumas horas após se demitir), José não pregou olho, ou melhor, sentia como um prego de angústia entrando-lhe no olho esquerdo, e assoava o nariz a toda hora.<br />
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Assoava o nariz e coçava o olho, de onde começava a vazar um líquido amarelo, e falava sozinho, sonhando com um osso pra roer enquanto vivesse viralatamente pelas ruas.<br />
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Seus olhos pretos (todo ele era preto, em verdade), brincava caralhamente com uma peitona também preta que entrou na bodega-dega onde mamava feliz nas tetas duras de uma cachaça em graça. Brincavam os olhos? Ou era o ca-cetim que tomava o cérebro de assalto, se apoderando do sentido olhal?<br />
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Que veio fazer a preitona (peituda+preta, ok?), num lugar tão sujo e escondido lá atrás da Central, na boquinha do morro da Providência? Cigarros, ela pediu e virou-se para onde o preto tava que tava, mamando e babando, pronto e tonto, com seus olhos pretos e pobres - pinguços de pé-sujo em geral são péssimos financistas. Ah!<br />
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Quem acreditaria? Não faz um ano e o preto era um próspero camelô, até que uma cacetada do guarda o deixou meio maluco e só mesmo cachaça pra pegar no tranco. Ei, ele tá falando.<br />
- Ô pretinha, não quer cuidar do nego que tá sozinho?<br />
Um sorriso safado explodiu no bar e os dois se casaram.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-68689095598639385892010-11-26T00:22:00.001-08:002010-11-26T00:22:16.365-08:00Morte sem nuvensDaí que o céu tinha um cor de chumbo, como eu dizia a mim mesmo, sentado à mesa do Loreninha. Ou violeta, sim, o céu muitas vezes ficava violeta, e a copa das árvores do outro lado da São Francisco Xavier contrastavam seu verde profundo, sombrio, severo, com aqueles tons roxos ou plúmbeos dos céus de Vila Isabel. Eu me deixava levar pelos instintos, ali no bar, sozinho ou entre amigos. A gente se divertia. O Maurício chegava com o violão e cantávamos canções famosas e algumas inéditas, que eu e ele havíamos escrito durante aquele Carnaval em Friburgo, em 1993, antes de ingressarmos na universidade. Inesquecível carnaval... a gente escreveu umas dez ou doze canções, inspirados pela vodka e pela vista da montanha de pedra que havia do outro lado do rio, e que possuía, no cimo, uma cruz. Daí o nome: montanha da cruz.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-90021290380537361652010-11-26T00:20:00.001-08:002010-11-26T00:20:48.106-08:00BaixadaEstávamos, como sempre, no velho botequim do seu Artur, bebendo nossa cerveja e comendo uns salgadinhos. Eram dez horas da noite. Todos estavam um pouco bêbados, eu inclusive. Aliás, no ranking etílico, eu devia estar entre os primeiros colocados, pois tinha ido a um churrasco em Magé nessa mesma tarde e tomado umas oito ou dez caipirinhas.<br />
<br />
Mas não tão bêbado para deixar passar despercebido aquele carro de lanternas apagadas que seguia pela rua em baixa velocidade. E talvez o álcool tenha ajudado a me fazer sentir as emanações negativas que vinham do veículo. Muito negativas. Corri de volta ao bar e falei com meus amigos que o "bonde" estava chegando.<br />
<br />
Em minha mesa e nas vizinhas, que tinham escutado, e nas outras do interior do bar, onde a informações chegou dois ou três segundos depois, o pânico foi geral, mas, num primeiro momento, ninguém gritou ou correu. Havia apenas perplexidade.<br />
<br />
O carro parou na porta do bar e saíram quatro homens armados. Um deles portava uma metralhadora automática, com a qual ele abateu, logo de cara, umas cinco ou seis pessoas que estavam de pé, junto à entrada do estabelecimento.<br />
<br />
Os outros seguravam pistolas e fuzis. O tiroteio começou, e a gritaria e as pessoas que estavam no interior e não podiam escapar pra fora, saltavam para dentro do balcão e se enfiavam dentro das dependências internas do bar. Dos que estavam nas mesas da calçada, apenas eu e o Ubaldo conseguimos fugir correndo em zigue-zague pela rua, os tiros zunindo em nossos ouvidos. Levei uma bala no ombro e Ubaldo no braço, mas ficamos bem.<br />
<br />
Total da chacina: vinte e um mortos, só naquele bar.<br />
<br />
Por incrível que pareça, na mesma noite, eu e o Ubaldo, depois de passar na Emergência do Hospital Geral de Bonsucesso, ainda fomos beber cerveja. Queríamos neutralizar o terror animal que nos dominava. É horrível sentir esse tipo de medo. Como um frango num abatedouro que, minutos antes de virar embalagem da Sadia, adquire lucidez e consciência de quem é e do que lhe vai acontecer.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-62239907890028515502010-11-26T00:18:00.000-08:002010-11-26T00:18:02.109-08:00Resgate de um ex-sonhoResvira-te e beija o mundo. Bife com salada, antepasto do caos, esfumaçando-se por avenidas azuis. Desinventa o amor. Enche novamente teus lagos interiores com lágrimas de desejo. Escolhe a ocasião ardente e salta. Mergulha no mar sangrento do medo.<br />
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Sozinho, sempre. E demônios. Todos suavemente sentados ao bar, na beira da estrada que te leva ao suicídio, aos poemas, às paixões. O tempo? O tempo ri desbragadamente, o estômago forrado de churrasco e caipirinha. Queres fugir? Espera.<br />
<br />
Queres fugir?<br />
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Então venha, discretamente. Silêncio. Na hora de gritar, te aviso.<br />
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Venha, abra a porta e entre.<br />
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Vê Deus? Ele é um velho de jeans e charuto cubano na boca. Escutando rock antigo. Ele jura que ainda dá no couro e o estoque de Viagra no armário do banheiro confirma.<br />
<br />
Deus te conduzirá à São Paulo, para passear pela metrópole com olhos puros. Verás as prostitutas da Rua Augusta. Os poetas da Praça Roosevelt. Os meninos que fumam crack.<br />
<br />
Depois te mostrará o Rio. A esquina sagrada da Lapa, riachuelo com lavradio. Travestis e estudantes discutindo pornografia e estética, cinema e política, novas formas de relacionamento e poemas beatniks.<br />
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Resvira-te e beija o mundo, abre os braços e imita o cristo safado e humano dos bordéis pós-modernos, famoso travesti eletrônico que inventou o sexo ontológico. Ah, que orgasmos você não teria diante dos sublimes olhos de Deus.<br />
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Final com fritas: o Espírito Santo comeu Maria, está escrito na Bíblia. Viva o Espírito Santo, fudedor discreto, boêmio despachado e vagabundo nato. O verdadeiro pai de Jesus.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-8664580028729760172010-11-26T00:16:00.001-08:002010-11-26T00:16:48.480-08:00O leitor comumSinto-me um tanto metalinguístico, escrevendo sobre a escrita, mas enfim, se eu me divirto com isso, qual o problema? Iniciei há poucas semanas uma série de artigos sobre as novas tendências da ficção brasileira, polemizando com outro escritor. Meu colega de letras acusa o romance contemporâneo de ter enveredado por um caminho extremamente hermético, o qual, apesar de bem recebido por críticos e outros autores, afasta-o mais e mais do leitor comum.<br />
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A teoria dele converge em favor de uma literatura mais aberta ao grande público, desenvolvendo melhores tramas, enredos mais consistentes e mais empolgantes. Eu acho importante ressaltar, no entanto, que o romance de história – em oposição ao romance de linguagem, joyciano - nunca deixou de ser produzido no Brasil. Marcos Rey, Sergio Santanna, Marcos Souza, Marçal Aquino, para citar apenas alguns, têm produzido narrativas mais ou menos lineares e acessíveis nos últimos 10 a 20 anos. Talvez ainda não tenham encontrado a fórmula do best seller, como o fez Paulo Coelho, para falar de um nativo, ou Dan Brow, para citar um americano, mas não creio que eles almejem apenas agradar críticos e outros escritores. Quanto à fórmula do sucesso, os autores citados sempre podem encontrar, num dia de inspiração excepcional, o enredo que galvanizará o grande público. Temos uma classe média leitora com mais de 5 milhões de pessoas. Um mercado promissor do qual, mais dia menos dia, alguém tocará o ponto G.<br />
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Mas é verdade que a outra vertente, com textos fechados, densos, de difícil acesso ao leitor não especializado, contendo códigos e referências complexos, têm ganhado muito prestígio em anos recentes. Meu colega lamenta que esta vertente venha sendo tão incensada por crítica e Academia e dominando os cadernos culturais.<br />
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Admito que fiquei confuso no meio dessa polêmica. Escrevi alguns ensaios contraditórios, acusando gregos e troianos e não tomando nenhuma posição definitiva. Mas como o tema continua me entusiasmando, decidi fazer mais um esforço para elucidar - para mim mesmo e quiçá para algum náufrago desavisado que ancorar por aqui - esse mistério. A literatura brasileira estaria se fechando em si mesma, tornando-se uma literatura de panelinha, distanciando-se do leitor comum? Para saber, resolvi fazer uma pesquisa empírica e ir em busca do leitor comum. Eu queria conhecê-lo a fundo (com todo respeito). Onde ele mora, em que trabalha, quanto ganha por mês, se toma Viagra, assiste novela, bebe vodka, fuma maconha e, naturalmente, o que esperava de um romance - eram algumas das questões que me vinham à mente.<br />
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Inicialmente, havia decidido não procurar o Leitor Comum no mundo virtual. Queria encontrá-lo pessoalmente, ter um contato ao vivo. Mas depois de perambular por dias inteiros nas ruas do centro do Rio, infrutiferamente, resolvi apelar à rede para fazer a primeira abordagem. Abri uma página no Orkut intitulada "Sou um Leitor Comum". No dia seguinte ele apareceu, deixando comentários. Trocamos emails. Ele gostou da proposta e marcamos de beber uma gelada num barzinho da Riachuelo, Lapa.<br />
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Cheguei um pouco mais cedo ao encontro, agendado para nove horas da noite. Sentei-me a uma mesa na calçada, uma dessas de plástico, com propaganda de cerveja. A cadeira também era de plástico, com braços e recosto. Prefiro essas às de metal, geralmente tortas e desconfortáveis. Era uma quarta-feira de verão. Fazia calor e as outras mesas estavam todas ocupadas por gente bebendo cerveja. A atmosfera lapiana, como de praxe, transpirava volúpia, me fazendo sentir um friozinho na barriga. Finalmente, eu pensava, excitado. Finalmente vou conhecer o Leitor Comum. Nenhum escritor brasileiro contemporâneo jamais o conheceu. Por isso não conseguem seduzi-lo. E assim ele continua comprando Paulo Coelho, Irving Wallace, Sidney Sheldon, e sei lá mais que besteirol.<br />
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Em seguida, pensei melhor e concluí que eu estava sendo preconceituoso; que, se eu continuasse raciocinando assim, nunca seria capaz de compreendê-lo. Planejei iniciar, a partir do dia seguinte, um estudo sobre os livros mais comprados pelo Leitor Comum. Seria um suplício inominável, mas eu tinha que me esforçar, se quisesse de fato atingir o LC e ficar rico. Ainda me pesava na consciência aquele jantar na casa da minha mãe, em que o marido da minha prima fez um comentário entusiasmado sobre o Código da Vinci. Não consegui evitar um olhar de desprezo e o tom de voz escarninho. Ele ficou visivelmente abatido. Hoje, recordando a cena, ponho-me em seu lugar. Eu pensaria assim (se eu fosse ele): "olha só o pedante, como é patético, invejoso; como se ele fosse capaz de escrever um romance tão bom; como se fosse capaz de vender mais de 40 milhões de livros".<br />
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A verdade é dura, mas precisamos encarar. Existe um déficit enorme de narrativa na literatura brasileira. Mesmo entre os medalhões, não temos nada de extraordinário em termos de trama. Além disso, o escritor brasileiro tem a mania de achar que, só porque leu muito, tornou-se superior ao comum dos mortais, quando, francamente, na maioria das vezes, suas leituras excessivas só serviram para lhe detonar a saúde física e mental. Veja os romancistas americanos: em geral são esbeltos, vigorosos, joviais, dão entrevistas na televisão, engajam-se em campanhas políticas. O Philiph Roth é uma exceção porque é judeu e os judeus são pessimistas – com fortes razões históricas para tal. Os escritores brasileiros, tirante o Marçal e o Reinaldo Moraes, costumam ser gordos, gagos, doentios, trêmulos, indecisos, apáticos, tímidos, com forte inclinação ao alcoolismo. Droga, estou generalizando, falando besteira, odeio isso. Apaguem da cabeça as últimas frases. Tenho que pensar mais claramente, mais cientificamente, se quiser de fato entender a cabeça do Leitor Comum - não é possível que...<br />
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Com licença, você é o Miguel do Rosário?<br />
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Olhei para o lado e para o alto e vi um sujeito mais pra baixo que pra alto, cabelo grande encrespado, bermudão colorido, havaianas, camisa branca - e um sorrisão imenso, desconcertante. O sorriso dele agarrava-se ao rosto como uma criança ao colo do pai, com fúria, medo, amor. Era um buraco, um abismo. Podia-se mergulhar naquele sorriso e se perder para sempre.<br />
Desculpe, eu pensei que...<br />
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O apogeu do sorriso havia passado. Restava o seu crepúsculo, ainda glorioso, mas cuja luz declinava vertiginosamente. Um sorriso quase triste. Ele fez menção de se afastar. Eu o contive.<br />
Sim, sou eu. Desculpe-me, estava distraído. Você é o Leitor Comum?<br />
Levantei-me e estendi a mão. O sorriso ressurgiu com toda força, como um sol que desistisse de se pôr e voltasse, incoerentemente, a subir no horizonte. Ele aparentava uns trinta e poucos anos, tinha barba por fazer e parecia não ter muito dinheiro.<br />
Pode me chamar de Leco!, respondeu, apertando-me a mão com energia. Sua voz elevava-se no início das frases e perdia vigor ao final. Reparando bem, era mais pra baixo, um metro e sessenta e cinco, e pesava um pouco acima do ideal. Os traços eram bem comuns e, apesar do rosto marcado por cicatrizes de uma antiga doença de pele, possuíam uma distinção quase bela. Talvez (a razão dessa beleza canhestra) fossem os olhos castanhos claros, atentos, puros, alegremente desconfiados – como quem se diverte com seus próprios temores. Talvez fosse o hiato irônico entre os dois dentões da frente.<br />
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Sentamo-nos. O garçom trouxe um copo para Leco e trocamos algumas frases sobre o calor, o bairro, nós mesmos. Leco enfim deu uma informação importante.<br />
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Eu tenho um ateliê aqui quase em frente. Sou artista plástico.<br />
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A frase gelou-me a espinha. Eu esperava tudo, menos um artista plástico. O Leitor Comum deveria ser engenheiro, funcionário público, professor, gerente de loja, dono de restaurante, estudante de medicina. Não podia ser outro artista. Consolei-me pensando que, ao menos, não era outro escritor. O consolo durou pouco:<br />
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Eu cometo uns poemas de vez em quando, disse Leco, enchendo seu próprio copo, após ter esperado em vão que eu o fizesse. Fiquei constrangido de ter me esquecido desta óbvia delicadeza, e sorri sem graça, à guisa de desculpas.<br />
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Verdade? Que livro você está lendo? perguntei, mudando de assunto. Enquanto enchia meu copo, refletia se cairia bem uma cachaça. O bar do Paulinho tinha uma excelente, por um bom preço. Eu estava com vontade de começar a beber a sério. Escuta, Leco, eu vou pedir uma cachaça. Você quer também?<br />
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Bem, Rosário, preciso dizer uma coisa... Estou completamente duro. Sabe como é, vida de artista no Brasil é foda.<br />
Fica frio, você é meu convidado. Vamos beber.<br />
Pedi cachaça, depois outra - e depois outra. E mais outra.<br />
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Aqui confesso o fiasco da minha empreitada, pelo menos até o momento. Eu e Leco bebemos cerveja e cachaça em grande quantidade, depois fomos a seu ateliê, quase em frente, e fumamos uns baseados. Havia trabalhos magníficos pendurados nas paredes, objetos que mesclavam materiais esdrúxulos: anúncios de igrejas evangélicas, placas de carro, bonecas de plástico, cabides, pedaços de computador e de celulares, e cada um tinha um tema, remetia a algum significado misterioso. Enquanto fumava, eu contemplava embevecido aquilo tudo. Pouco conversamos sobre literatura, e o pouco que fizemos não registrei devidamente, com certeza em virtude (melhor dizendo: pela falta de virtude) do excesso de substâncias bebidas e fumadas. Recordo apenas que ele disse estar lendo a biografia não-autorizada do Roberto Carlos. Tinha ficado curioso, só porque o Rei tentou proibi-la.<br />
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Marquei de encontrá-lo em outra oportunidade, quando espero colher mais dados. Pra dizer a verdade, tudo isso aconteceu ontem. Até agora, o único resultado da minha pesquisa sobre o Leitor Comum, além de uma grande ressaca, é a impressão – pela qualidade da luz filtrada pela cortina - de que já são umas cinco da tarde e que faltei a todos os compromissos do dia.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-72869075065706591752010-11-26T00:15:00.000-08:002010-11-26T00:15:03.352-08:00O esfomeado louco de Paris<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjr34MkT8Tx4-K3Ki8ALpc_5xWLRsn_r6_DJhfOXp7Q2wjIAeLcIIIjrsPOczi4l24Ek9NhwF8hbxqm8u0ntOQW72IoxNDwPYmylGKwJYYh_sJAfqdomgM0-_M2ZU7J3wz60gm47Ixm505Z/s1600/paris1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjr34MkT8Tx4-K3Ki8ALpc_5xWLRsn_r6_DJhfOXp7Q2wjIAeLcIIIjrsPOczi4l24Ek9NhwF8hbxqm8u0ntOQW72IoxNDwPYmylGKwJYYh_sJAfqdomgM0-_M2ZU7J3wz60gm47Ixm505Z/s400/paris1.jpg" width="400" /></a></div><br />
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Querida, tenho tentado extrair, como de um fruto seco, alguma utilidade da minha amargura. Na verdade, sempre foi assim. Sobrevoando as ruas de Paris, sob o olhar sarcástico das quimeras da Notre-Dame, percebo que sempre foi assim. Carrego uma maldição um tanto ridícula e com nove anos eu me ajoelhava, sozinho no quarto, rezando à Cristo, ou que é pior, imaginando-me a propria reencarnação de Cristo. De forma que sempre fui louco, mesmo após admitir, ainda na primeira infância, que não poderia realizar mágicas e transformar o mundo conforme o meu desejo. Foi como louco que me aproximei Dela, da Maldita Musa, que me lancei em seus braços, atraído pelo perfume de seu Cio. Meus amigos todos foram ou são loucos. Alguns mesmo foram internados. Afora isso, uma solidão desgraçada, e a consciência pesada por uma maldade tão sólida como a Torre Eiffel. Uma espécie de consciência histérica do mal. Tem sido isso, entre muitas outras coisas, minha desgraça e minha decadência. Claro que invento, que minto, que trapaceio, e talvez tudo não passe de uma longa crise (e o que é pior, fingida), mas enfim a vida, para os infelizes e solitários, não seria isso - uma longa e desesperada (fingida) crise?<br />
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A ficção, para mim, é o malte do sofrimento, o fel amargo de um riso falso. Mas não cobro isso dos outros, não sou o psicopata que aponta o dedo para a vulgaridade (ou inteligência) alheia. A fé que ponho na beleza deste sofrimento é algo de inominavelmente egocêntrico. No entanto, o que fazer se a vida se me revela somente através deste pobre recurso? Contemplei com atenção os detalhes curvos dos prédios, os rostos em pedra talhados sob as janelas, as esculturas impressionantes presas aos grandes Arcos - que são três ou quatro, incluindo o mais famoso, o do Triunfo, ao final do Champs-Elisée. Escutei também o sussurro dos fantasmas que assombram as velhas catedrais e topei, nos arredores de Saint-Germain de Prés, com um dos monges que trabalhou no filme O Nome da Rosa.<br />
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O aspecto terrível dessas experiências é o sentimento de vazio que delas derivam, sabe? Eu também observei a oculta histeria das parisienses, sempre prontas a um grito que causaria a destruição da cidade que Hitler desejou eliminar do mapa, invejei a elegância dos sobretudos, os cabelos bem penteados, e muitas vezes, ao entrar nos cafés, imaginei-me como um SDF a incomodar a paz aconchegante dos burgueses. Isso porque, em Paris, os SDF se vestem bem, e você só pode percebê-los por um detalhe: barba mau feita, odor característico, furo no casaco e, principalmente, uma grande vergonha estampada no rosto. O meu sobretudo já estava todo furado e, apesar de eu cheirar bem, porque tomava banho (quase) diariamente, eu gaguejava na hora da falar um francês horrível, e por fim, temendo aparentar vergonha, acabava sentindo-a ainda mais intensamente e exibindo o que se chama, conforme o vulgo, cara-de-bunda.<br />
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De resto, não resta nada. O que não sei, eu desisti de saber, pois perco todo tempo me absorvendo em sofrimentos pueris, urbanóides, os quais, tivesse eu nascido no sertão da Paraíba, me serviriam de alimento (como diria o Ivan Lessa) e a fome que passei em Paris foi mais elegante que uma fome na Baixada Fluminense, com certeza.<br />
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Pra dizer a verdade, se é que ainda é possivel dizer a verdade, impressionou-me o Louvre, que me lembrou um elefante vinte vezes maior que o natural, fumando um baseado gigante e, olhos nos meus olhos, recitando um poema do Dylan Thomas. O rio Sena evocou-me mil metáforas sanitárias, por me lembrar um magnífico e poético esgoto a céu aberto, onde Voltaire cuspiu seu desprezo pelo Antigo Regime, Henry Miller o seu pelos United States, e Rimbaud vomitou todo o absinto ingerido antes de comer o cu de Verlaine na Pont-Neuf.<br />
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O fato é que estou puto - de inveja, naturalmente, apesar do privilégio de conhecer Paris - por Eles, Eles e Eles, etc, o caralho bêbado fazendo quatro pra polícia, não terem me contratado para escrever crônicas, ou atualizar um blog, como fizeram com outros. Eles merecem, deixa eles vencerem na vida, coitados! Eu sei, estou manchado com uma pecha sinistra (tendências políticas equivocadas, falta de talento, ou o fato de ainda não ter lançado o meu romance lírico e pós-moderno, tudo junto, sei lá), num país cheio de censura branca, velada, em que todo mundo sabe muito bem o que pode e não pode escrever e fica bem quietinho - estão mais é certos, eu é que estou errado, sempre estive errado, afinal eu sou Cristo, não sou?, e Cristo foi um otário, e sou Napoleão também, e o baixinho foi besta de invadir a Rússia em pleno inverno. Enfim, sou louco e nem um pouco feliz, mas, pensando bem, não quero ser feliz, quero apenas ser rico, para poder ser independente desses porras todas, beber meu uísque importado, escutar meu blues e falar mal da mídia, do mundo pop, dos governos merdas, de mim mesmo... Uma espécie de Jabor amulatado, anti-Global, que ainda acredita no Brasil, quem sabe? Com amor, Miguel.Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5236248418548994822.post-67286272983196038912010-11-26T00:11:00.001-08:002010-11-26T00:11:48.996-08:00SperataNada fazia Alberto abrir a porta do quarto. O colega com quem ele dividia o apartamento argumentava: <br />
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Cara, você não é o primeiro a receber um fora. Acontece. É a vida, mêu.<br />
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Ele não respondia, e o amigo desistiu. Se ele quer passar a vida neste quarto, foda-se, pensou, contanto que pague sua parte no aluguel... Abriu a porta e ganhou a rua. Mas essa aparente displicência não refletia a sincera preocupação do amigo em relação à Alberto.<br />
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Alberto estava trancado no quarto há três dias. O amigo sabia que ele vivia porque Alberto, de vez em quando, saía do quarto para ir ao banheiro ou à cozinha. Mas voltava num instante e se trancava novamente.<br />
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O amigo, cujo nome era Augusto, ligou para a moça em questão e explicou o que estava acontecendo. Ela não deu a mínima. Disse que Alberto era um mimado e que merecia sofrer um pouco.<br />
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Era sexta-feira, dez horas da noite e Augusto, após insistir por duas horas, foi se encontrar com a turma. Ninguém sabia o que estava acontecendo e Augusto decidira pedir ajuda. Depois de tomarem umas cervejas, ele iria trazer a turma ao apartamento e todos juntos fariam coro solicitando a presença de Alberto.<br />
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Enquanto isso, Alberto, trancado em seu quarto, observava uma pintura na parede, que ele ganhara de Helena, o motivo de seu desespero. Era uma reprodução de um trabalho de Basquiat, e representava uma forma humana, com tintas pretas, vermelhas e amarelas. Esse troço é um tanto sombrio, pensou Alberto, enquanto esticava o braço para alcançar um potinho sobre a escrivaninha.<br />
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Sentado na cama, Alberto abriu o potinho e o aproximou do nariz, aspirando profundamente o aroma gostoso da marijuana. Com os dedos, colheu uma porção e jogou sobre um livro fechado que tinha diante de si. O livro era Sexus, do Henry Miller, que Alberto já lera duas vezes. Despelotou a maconha lentamente, olhando de vez em quando para a pintura na parede. De repente parou e olhou ao redor, como quem dá falta de alguma coisa. Saltou da cama e foi até o outro lado do quarto, percurso que não lhe tomou mais que dois passos. Ali estava o som e a coleção de cds. Escolheu um e inseriu no aparelho. Voltou ao lugar original com uma expressão curiosa, como quem aguarda ansioso o início do jogo final de um campeonato de futebol.<br />
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Enquanto Erasmo Carlos mandava seus rocks antigos, Alberto prosseguia a operação de enrolar um baseado. Depois de três dias de isolamento, estava bem mais calmo. Augusto era um bom amigo mas lhe enchia muito o saco. Será que não podia compreender a sua necessidade de ficar sozinho? Tinha decidido: depois de abril, quando expirar o contrato, vou cair fora desse apartamento e alugar um só para mim. Morar sozinho, sem ninguém para me amolar.<br />
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Terminou de apertar e colocou o back na boca. Numa das paredes, o espelho devolveu-lhe a imagem de um brasileiro de trinta anos, um pouco acima do peso, mas conservando ainda alguns requisitos necessários para conquistar uma garota. Pegou no pênis e fez cara de macho. Yeah!! Suas putas!! Eu vou comer todas vocês!!<br />
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Depois desse breve ritual chauvinista, que o fez rir de si mesmo, pegou um isqueiro na estante colada à cama e acendeu o back.Unknownnoreply@blogger.com